Viver não é uma situação
adjetiva, nem metafórica. É um dado real, que começa
com uma data e termina com outra. Daí um certo temor em enunciar
a primeira, que, aliás, como diria Murilo Mendes, é da competência
do registro civil. Porque, na verdade, nascemos depois, e continuamos a
nascer interminavelmente.
Para o escritor, a primeira data de alguma importância
é a da publicação de seu primeiro livro. Eu era aluna
da PUC no Rio e graças ao apoio de Thiers Martins Moreira, Augusto
Mayer, Aurélio Buarque de Hollanda e Antonio Houaiss, soltei meu
primeiro grito: o Cerco da Primavera, editado por Carlos Ribeiro, meu amigo
querido até hoje. Ainda adolescente, o grande terror era o da morte,
só compensado pela idéia de amor. Eros se opõe a Phobos,
aprendi mais tarde com Jung. Amor e morte são os temas fundamentais
desse livro, que pretende, por medo da dissolução, um afirmar
de meu eu, de uma identidade, a sensação penosa de uma solidão
que ainda é desafio e orgulho.
Comecei em seguida a elaboração de
uma Explicação de Narciso, talvez sob a influência
de um ambiente todo empenhado no estudo de Mallarmé, preocupado
com a beleza pura, completa em si mesma, cujo símbolo poderia ser
a Hérodiade ou o Narciso. Mas eu queria ultrapassar o que via, queria
intuir na fatalidade de ser, alguma coisa que deveria explicar, no mito,
aquele voltar-se inteiro para si mesmo, aquele indagar-se que desconhecia
até certo ponto o desdobramento intelectual de Valéry.
Ainda não havia tão
consciente o sentido de "casa de Ser", mas alguma coisa secretamente advertia
que a linguagem era uma forma de dizer o Ser. Pouco tempo depois, a preocupação
de objetivar o poema, sob a lição de João Cabral de
Mello Neto, me fez escrever um livro bem curto, intitulado A Suave Pantera,
que me deu o prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras,
e de que Aurélio Buarque de Hollanda retirou abonações
para o seu dicionário, fato que me deu uma das maiores alegrias
de minha vida. A percepção não é automática,
só aos poucos nos vamos dando conta do que importa realmente, com
a seleção natural do tempo. Passei a prescindir do que é
bonito, do que agrada, e aceitei a função da linguagem como
sentido de algo que me escapava. Escrevi depois O Sangue na Veia, ensaio,
tentativa de definir o amor em quarenta e seis poemas, onde há a
vontade de desligar o conceito de amor do de paixão. "Conhecer e
abrasar-se" de Vieira me parecia mais verdadeiro que a representação
de um cupido de olhos vendados. Hoje tenho cá minha dúvidas,
pois, quem sabe, uma certa exaltação que tende ultrapassar
todo limite não possa dar também uma visão nova de
que existe?
Mais tarde um pouco é o momento de A Vida
Natural, livro que nasceu depois de uma visita a Goiás. O absurdo
não fizera seu ingresso, mas já se ensaiava por trás
da dificuldade de captar a orgia, o esbanjamento, o luxo da Natureza, tão
sem preocupação com a causa e efeito, tão majestosa,
contraditória, ocisiva e criadora.
O Contato, eu já disse e reafirmo, é
"la rencontre manquée" de que fala Lacan. É o meu fracasso
diante da opacidade do outro ou da minha vontade de transparência.
Pensar a emoção fez da linguagem um sistema, ao que tudo
indica, pouco acessível, pois aquilo que estrutura o discurso é
o mesmo que se faz existir através dele.
Invocação de Orpheu é isso
que aí está. Orpheu experimenta a iminência do Encontro,
vislumbra uma conjunção que não se realiza. É
a nostalgia da completude, a revolta contra o absurdo de sua impotência
diante dos deuses cruéis. Como não há escolha, o caminho
deve ser a tentativa de Aliança com esse Real, divino e atual, que
se impõe cada vez mais de forma severa e enigmática, ao qual
me submeto agora já sem doçura, sem indulgência, mas
com uma esperança de amor que me reconduz a mim mesma toda vez que
algo ameaça levar-me para longe.
O resto é a vontade de entender, que persiste.
Marly de Oliveira
Do livro: "Invocação de Orpheu" (4ª
capa), Massao Ohno, 1980, SP
Enviado por: Leninha