“Por que baixamos a cabeça, nos resignamos e nos
condenamos a viver uma morna existência de
conformismo, de superficialidade, de
não-reflexão, de não-entrega, de
não-amor?”
(Cinara Nahra, Em Quadrados)
Há muitas versões literárias do desejo gay, de muitos autores. A interpretação de cada escritor nem sempre é coerente com sua trajetória existencial. O desequilíbrio poderia ser atribuído a uma variedade figurativa de modos de atuação. Muitos textos não são primorosos e tampouco resgatam o frescor da realidade. São criações ao mesmo tempo encantadoras e patéticas. Eu descobri o imaginário homossexual pretendido através das novelas de James Baldwin, Gore Vidal e Christopher Isherwood. Não aceitava os amores masculinos disfarçados de dissimulados, tagarelas, colunistas sociais, cabeleireiros ou personagens caricatos de programas de humor na tevê; a minha organização precoce social e cultural das relações com o mesmo sexo tinha como cenários, a Grécia e a Roma antigas. Hoje, depois de anos de encantamento e discórdia, distanciei-me do mundo mediático homossexual.
Deixei de freqüentar saunas desde o final dos anos 80, quando passava os domingos de sol no banho turco Alterosa, na paulistana Vila Matilde, povoado por adolescentes da colônia operária de origem italiana, ou na Vila Mariana, onde encontrava Caio Fernando Abreu, gastando horas ouvindo seus ácidos comentários da vida literária alheia. Conheci Caio num encontro literário em Registro, interior de São Paulo, promovido pela poeta Leila Míccolis. Dividimos o mesmo quarto, e passamos a última noite do evento bebendo desesperadamente e caminhando pelas ruas desertas da cidadezinha. Caio acompanhava-me tremendo de ansiedade sexual, e quando fomos impedidos de permanecer num clube de blues somente freqüentado por negros, resolvemos aquietar e partir em direção ao hotel. Ele não se deu por satisfeito, resmungando, e emocionou-se com o encontro inusitado com um vaqueiro noturno. Levamo-lo conosco e, enquanto tomávamos uísque e o nativo saudável mijava no banheiro, Caio sussurrou: “Deixe-o para mim, colega. Você terá tempo para outros como ele. No meu caso, não tenho tanta certeza”. Eu não sabia o que realmente queria dizer, ou melhor, não confiava o suficiente nas suas intenções. Mesmo assim, deitei-me, e antes de pregar os olhos no sono vi os dedos em pânico do autor de Onde Andará Dulce Veiga? apertar a vara do oferecido Ganimedes. Esta é uma das dezenas de histórias gays que vivi antes de fatigar-me do bas-fond, dos bares e boates entupidos de bufões, bichas arrogantes, michês apetitosos, travestis, banheiros sórdidos, olhares gulosos, troca de telefones, tarados, perversos, artistas, viciados, bofes violentos, seres limitados e vazios.
O mundo gay não é revolucionário, a hipocrisia homo é semelhante a hetero. O slogan do gay criativo, boa-gente, alegre e solidário é apenas uma máscara usada por questões de sobrevivência. Não há subversão ou mudança de padrões sociais, é apenas um caleidoscópio onde tudo é misturado e confundido. O gay típico, quando assumido, normalmente crê que é o centro do mundo e inventa uma sociedade à parte dentro da sociedade, que na verdade não passa de um plágio, resgatando a frivolidade feminina, as frustrações do machismo masculino e o romantismo superficial dos insensatos. Indiferente ao absurdo que surgia diante de mim, deixei de sentir eletricidades no corpo no Parque do Trianon, na rua Carlos Gomes em Salvador, no Marè em Paris ou nas praias de nudismo na Aldeia do Meco. Eu não entendia ícones como Madonna, Versace, Boy George (que dizia, “quando eu quero sexo, eu compro”), vídeos pornôs, anúncios nos classificados, top-models, cinemas de pegação, academias de ginástica, ABBA ou Julia Roberts. As revistas de temática homossexual sempre me pareceram demasiado enclausuradas numa estupidez militante ou beirando o pornográfico.
Decidi ser mais feliz ouvindo Chet Baker, lendo Pasolini, acompanhando a obra pictórica de Francis Bacon e encontrando casualmente amantes no meu cotidiano, sem preocupar-me em buscá-los. Estive em Londres por um ano e não pisei os pés uma segunda vez nos parques públicos ou quartos escuros. Fotografei uma série de machos nus, entre eles um famoso jogador da Seleção Portuguesa, e não me interessei pelo resultado. A vitalidade orgânica do carnaval carioca e baiano transformou-se em outra esquisitice pessoal: o entregar-se de corpo e alma ao diabólico já não era sinônimo de diversão. Cheguei a um aborrecimento tal, que me afastei drasticamente da comunidade gay, perdendo amigos e abrindo os olhos para novos horizontes. Eu não queria passar as minhas horas num reinado subterrâneo falando de garanhões, arranhando frases de efeito como um Mencken dos trópicos e caçando a pós-modernidade eterna. Queria envelhecer, ter idéias próprias, não perseguir a fama e conhecer pessoas com outro perfil psicológico. Com a minha velha mania de encontrar um dia o lugar que me servia, procurei uma manifestação pessoal, autêntica, próxima à minha maneira de ser. Como é comprovado que não existe ex-bicha, mesmo que alguns pais e religiões procurem provar o contrário, acatei a postura do viajante, do leitor rigoroso, do homem aberto para a ética das suas escolhas afetivo-sexuais.
Troquei idéias em Tânger com Paul Bowles, passei uma tarde
em Copacabana com Manuel Puig, participei de um recital poético
com Ferlinghetti no Soho britânico, estive no velório de Al
Berto e entrevistei Juan Goytsolo, o catalão autor de Carajicomedia,
e o colombiano Fernando Vallejo. Fui visto em paradas com milhares de manifestantes,
assaltaram-me, enganei corações carentes, tirei a roupa em
locais públicos, pousei nu sem pudor para escultores, freqüentei
associações preocupadas com o homossexualismo (em seus aspectos
históricos, políticos, sociais, literários e antropológicos),
participei de palestras e seminários, escrevi com autenticidade
uma série de contos abordando o desejo entre homens (publicados
em revistas literárias, sites e no livro Retratos em Preto &
Branco – Contos Góticos de Madrid) e ensaios celebrando Mishima,
Lorca, Genet, Reinaldo Arenas e Lúcio Cardoso. Simpatizei com forasteiros,
outsiders e emigrantes marcados pela diferença racial e sexual.Vários
amigos faleceram vitimados pela Aids, apaixonei-me por alemães e
angolanos, seduzi um cubano anti-castrista num hotel em Havana, masturbei-me
com um pracinha português num trem, beijei furiosamente o ator Rupert
Everett numa festa, dormi com dois guapos estudantes italianos nas margens
do Lago Ness, rasguei o meu diário de amantes de todos os tempos
e chorei inúmeras vezes na solidão de um quarto numa terra
estrangeira. A solidão como uma certa patologia pessoal, uma experiência
íntima – algo que nos passa – e, a maneira antiga, um determinado
modo de vida ligado a vocação de escritor, algo do qual a
escritura deve dar testemunho. Optei por uma vida homossexual em defesa
da singularidade, sem escândalos ou fúria, polêmica
ou glória. Uma vida banal de acordo com o meu delírio imediato.
Houve uma época em que tornei-me um chato, vivendo de recordações,
certo que o cotidiano gay era no mínimo um pastiche desprezível.
Não me enquadrava na massificação, na fundamentação
da aparência e do individualismo. Não perdoava o abandono
dos valores humanistas. Deixei de colaborar com fanzines feios voltados
principalmente para a libido. Não aceito uma afirmação
que não afirma nada ( salvo seu não-saber inconsciente, sua
liberdade sexual para negar tudo, acaso para negar o todo).
Não sou mais tão radical, e concordo que devemos lutar contra a perseguição, a humilhação e a descriminarão, mas continuo achando bobagens a capacidade irônica da miséria existencial e a imitação globalizada: a bicha de negro, jovem e apertadinha, tatuada e com alguns discretos piercings, de um bar de Cancum, reproduz o mesmo comportamento do companheiro negro, rastafari, do Pelourinho. São todos musculosos, afetados, na moda, sujeitos a espancamentos e aos boas-noites cinderelas. Nenhuma rebeldia, nenhuma reflexão. Para que serviu a prisão de Oscar Wilde? Ou o suicídio de Virgínia Woolf? E a sensabilidade de poetas e romancistas, pintores e cineastas como Whitman, Cavafys, Murnau, Visconti, Yourcenar ou da Vinci? Vivemos um tempo sem compaixão, de sexualidade explícita e vazio instantâneo.
Neste início de ano, completando quase uma década de estilhaços luminosos, leio Lúcio Cardoso e Adolfo Caminho, ouvindo o Acústico de Cássia Eller, a melhor cantora brasileira atual. Amo um espanhol terno voltado para complexidades existenciais bastante particulares e reencontrei um antigo e inteligente amigo no Rio Grande do Norte. Com esse último, visitei uma sauna simpática freqüentada por gays de todas as idades e prostitutos inocentes. Era um dia de chuva, uma chuva vertical e pesada, com uma reiteração sexual enlouquecedora, deixando tudo úmido e pegajoso; caia a chuva afogando a legitimidade de uma razão insensível a dor de uma existência. Um dos garotos de programa, mudo, mostrou o pau descomunal. Outro, moreno e bonito, sorriu, anunciando cobrar um cachê de vinte reais para ser ativo, passivo e até beijar na boca. A essência de eucalipto recordou-me velhos tempos. Um cinqüentão, bêbado, cantava uma melodia de Maysa. O seu olhar evidenciava estar familiarizado com todo tipo de infernos. Dois jovens atléticos passaram de mãos dadas, e alguém da mesa disse que fazem parte da categoria PA (não pagam por sexo, fazem “por amor”). “Eu não sou lésbica”, argumentou outro, debochado. Ninguém tem medo da Aids , não há uma noção de uma personalidade individual e o que reina são as necessidades, os instintos. Um viveiro alienado, onde o que se refere ao espírito morreu. Naquele momento recordei de um conto, Os Amantes, publicado em várias revistas eletrônicas, e sem qualquer repercussão, pois questiono a sexualidade e os sentimentos masculinos.
Escrevi para o ativista Luiz Mott, que levanta a bandeira do movimento homossexual brasileiro através do GGB (Grupo Gay da Bahia), e para João Silvério Trevisan, cujo Devassos no Paraíso é uma obra ímpar, e não recebi respostas. Depois se queixam da dificuldade de mobilizar intelectuais, artistas, anônimos. Como levar a sério os propósitos de cabeças do ativismo gay nacional que brilham como vaga-lumes e não compartem seus anseios com companheiros dispostos a colaborar? Seria mais importante procurar provas do homossexualismo de Maria Quitéria ou de Zumbi dos Palmares? Eu concordo que ando descrente de uma possível sociedade gay, embora creia vital, e faça minha parte escrevendo sinceramente, divulgando autores como o autor de Crônica da Casa Assassinada ou o psicanalista Jurandir Freire Costa.
Não me interessa o glamour gay. Eu gosto de muitas personalidades femininas, e não tenho vontade de ser nenhuma delas. Nem a adorável Carmen Miranda. Não nasci para participar de um circuito elaborado no teatro da moralidade burguesa. Prefiro uma viagem iniciática na companhia do barão de Charlus, das crônicas de Néstor Perlongher, dos filmes de Sérgio Bianchi ou de um romance como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, no qual o vaqueiro Riobaldo se apaixona por seu colega Diadorim. Prefiro a bondade de estranhos, esses anjos caídos e manipulados pela miséria das cidades e por bichas nervosas. O resto é circo cor-de-rosa – uma cor ridícula! -, arco-íris sintético e melancolia fantasiada. Sou homossexual e não foi uma opção, cresci assim, e não sofro de problemas morais, o que não significa que devo seguir o ôba-ôba da vasta maioria desbundada atrás do trio elétrico. É um cânone verdadeiro? Não sei. São premonições e espantos de um poeta. Sem queixas raivosas nem remorsos. Não prego a norma. Quem quiser, que viva como lhe agradar.
Antonio Júnior