Todo mundo sabe como é, ou já brincou de fazer o copo andar em cima de uma mesa, cercado por pedacinhos de papéis com as letras do alfabeto, na penumbra da noite. Depois de uma oração, o dedo indicador sobrepõe-se ao copo emborcado e lá vai ele, o copo, escorregando pelas letrinhas, falando inúmeras coisas sobre os participantes. Adolescente geralmente pergunta “com quem vou casar?”.
Mas houve um tempo em que, na minha família, isso era brincadeira de adulto. Coisas incríveis aconteceram e não vou contá-las todas aqui, pois poucos acreditam nisso e aprendi que a fé é coisa muito individual. Cada um sabe da sua. O fato é que, nesta brincadeira, ao mesmo tempo em que você encontra verdades, encontra mentiras também. Há sempre um espírito brincalhão de plantão, pronto pra te passar a perna e depois sair rindo de vocêpelo umbral afora. Nós, espíritas, seguidores de Jesus Cristo, com base no evangelho codificado por Alan Kardec, fundador do Espiritismo Cristão,que erroneamente somos identificados como "kardecistas", não costumamos brincar com isso. Demonstrações desse tipo são utilizadas por outras doutrinas, que não a nossa. Porém, naquela época, a família católica gostava desses desafios e — como quase todo espírita nasceu católico e quase todo católico gosta de mexer com o sobrenatural, mesmo não admitindo isso —, brincamos muito com os espíritos. Até demais!
Para narrar o que quero, antes preciso explicar um pouco como funciona o mundo espiritual. Ninguém é adivinho. Isso não existe. Nem mesmo os espíritos. A única diferença entre nós e eles é que eles não possuem mais a massa corporal e nós ainda a possuímos. Nossa sabedoria e nosso caráter continuam os mesmos de quando partimos dessa para a outra vida. Somos, lá no cosmo, a continuação do que somos aqui. Portanto, se alguém perguntar a um espírito que, enquanto encarnado era um matemático, se ele sabe sobre o corpo humano e suas doenças, provavelmente, ele responderá que não sabe. Se ele for um espírito de baixa categoria, ainda preso às coisas terrenas e descrente em Deus, vai fazer gozação e brincadeiras. Vai mentir e divertir-se às custas do seu interlocutor. Por isso, conversar com um espírito requer prática e sabedoria. Tem gente por aí que acha que se o espiritismo fosse verdade, teríamos as soluções dos problemas do mundo nas mãos. Ignorância de quem pensa assim. Ninguém é adivinho, nem traz as respostas sobre tudo no bolso. Muito menos se ganha na loteria com números ditados por espíritos. Não é este o fundamento de nenhuma religião séria.
Mas, voltando ao nosso assunto, naquele tempo eu tinha uns doze anos e havia acabado de fazer a primeira comunhão. Estudava com as freiras do Sacré-Coeur de Marie, cuja tia era uma freiraProvincial da congregação do Sagrado Coração de Maria. Educação francesa, rígida, pai supercatólico. A mãe não, pois ela era uma pesquisadora e estudou a fundo diversas religiões. Quandomorreu, estavabem próxima às religiões da Índia. Ela deixava-nos escolher, sem pressão.Fazia suas pesquisas no seu silêncio habitual, para não criar nenhum clima de hostilidade com o marido e sua irmã freira. Para se ter uma idéia da confusão, minha mãe e sua irmã pertenciam à uma família judaico- portuguesa, refugiada no Brasil, em Santa Rita de Jacutinga, Minas Gerais, como "cristãos novos". Uma bagunça! E assim somos todos brasileiros.
Estávamos todos na Fazenda X (não vou dizer o seu nome correto, para evitar invasões), na Mantiqueira, subida da Estrada Rio-Caxambu, onde papai tinha umas terrinhas num lugar bem antigo. A casa-grande havia passado por uma reforma, mas ainda guardava os ares dos tempos passados. Assoalho de tábuas, móveis seculares, não havia luz elétrica, nem telefone. A luz, de moenda, era fraca e quase nunca funcionava direito. O lampião e a vela eram mais rápidos. Sem televisão, a noite era triste para as crianças que, de tanto brincar durante o dia, apagavam cedo e nem ligavam para a falta do aparelho. Mas, numa determinada época, a moda era acabar de jantar e arrumar a mesa do copo, como se fôssemos jogar baralho. Como haviam ocorrido muitas coincidências com papai e mamãe, eles, atacados por uma falta de juízo louca e pela curiosidade, eram os primeiros a sentar-se na tal mesa. Diziam que era preciso mais gente para que a corrente se fortificasse. Como não havia outros adultos, pegavam as crianças mesmo.
Na primeira noite,apareceu na mesa um espírito de uma mulher que se dizia amante de um ex-senhor que habitara aquelas terras. Ela teria sido escrava e, descoberta pela Sinhá, teria sido assassinada pela patroa. Porém, antes de morrer, havia visto quando o seu senhor, numa noite, em segredo, enterrara um tesouro em um determinado local do pasto que passava atrás da casa. Para um espírito soletrar essa história, demorava horas. Ele se cansava e nós, também, pois isso é dito letra por letra e as frases são montadas por algum participante. Então, de repente, ele dizia que tinha que partir, pois alguém o chamava. Voltaria na noite seguinte para dar mais instruções. Assim o copo parava até o dia seguinte.
Eu nem dormi direito, tamanha a minha excitação. Papai começou a achar que ficaria rico. No seu delírio, já havia comprado todas as fazendas da região. Mamãe já planejava a volta ao mundo tão sonhada, o apartamento novo na Avenida Atlântica, os presentes para os filhos. Meus irmãos mais velhos já se viam de fusca novo, andando em Copacabana. Roupas de marcas famosas, jóias, etc. Eu sonhava com a Disneylândia e com uma éguaandaluza, que havia visto num circo. Conhecia tesouros de histórias de pirata e de um livro infantil de Maria José Dupré chamado "A Ilha do Tesouro". Ao mesmo tempo em que eu ficava alegre com a possibilidade de ficar rica, sentia um medo enorme daqueles espíritos que faziam o copo andar. Não tinha jeito, à noite dormia no meio da cama dos pais. E nem adiantava ninguém reclamar, pois pelo chão, os irmãos mais velhos, espalhavam colchonetes e ali dormiam também.
O dia seguinte se arrastava . Não havia modo de passar depressa. Só depois do jantar falaríamos de novo com a tal escrava e ela daria novas instruções. Assim chegou a hora. O Pai Nosso foi rezado e papai chamou-a. Não me lembro agora o nome que ela dizia ter. Então, ela veio. Começou falando que da varanda da casa-grande, calculando-se uma diagonal para a esquerda, a exatos cem metros, havia uma grande mangueira. Muito antiga e de raízes profundas. Ali deveríamos calcular uma outra diagonal para a direita, caminhar não sei mais quantos passos e chegar à beira de um riacho. Da beira do riacho, andaríamos mais alguns passos para o leste e chegaríamos a um pasto enorme, coberto de capim alto. Deveríamos entrar mato adentro e procurar um grupo de pedras de vinte a trinta cm de altura. Numa dessas pedras, haveria um "x", talhado. Mas não adiantava ninguém procurar o sinal, pois meu irmão Luiz era quem o acharia primeiro. Deveríamos retirar a pedra do lugar e cavar um buraco enorme, até encontrar o tal tesouro.
Nada disso poderíamos fazer àquela hora da noite, então, seria mais outra madrugada de medo e de excitação passada na fazenda.
Na manhã seguinte, fomos todos tirar as medidas e, acredite quem quiser, estavam absolutamente certas. Da maneira que ela contou. Todos os detalhes. A mangueira, o riacho, o capim alto, o grupo de pedras e o "x" achado pelo meu irmão Luiz numa determinada pedra. Juro por tudo quanto é mais sagrado. Meus irmãos ainda vivem e são testemunhas disso.
Não podíamos chamar os empregados para fazer esse trabalho. Meu pai achava que eles poderiam nos matar, se realmente achássemos o tal tesouro. Tínhamos que fazer tudo com as próprias mãos e, ainda por cima, disfarçadamente, sem ninguém notar.
Neste dia havia um primo conosco, de uns dezesseis anos, talvez. Mamãe disse-lhe “cava, Ricardo, que se acharmos o tesouro, eu te dou um fusca”. Ricardo não pensou duas vezes, tirou a calça e a camisa e, de cueca, colocou as mãos na terra. Cavávamos com o que podíamos. Com o que tínhamos ali. O dia inteiro e nada. No buraco achamos madeira serrada, como a que sustenta a terra nas laterais, o que era estranho para o local, mas nada de ouro.
Isso durou algum tempo. Quando a noite chegava, íamos falar com a tal escrava, dizer a ela que não havia nada. Não havia ouro ali. Que ela consultasse melhor sua lembrança. Que fosse atrás da alma do tal senhor. Ela insistia, dizia que éramos fracos, que não estávamos cavando direito. No dia seguinte, lá estávamos de novo, cavando e cavando. Ficamos assim uma semana inteira. Nada. Não achamos nada.
Uma noite papai resolveu fazer desaforos para o espírito. Veio um outro, que não era a tal escrava, e disse que não ia embora. Que ficaria ali pra sempre. O copo começou a correr pela mesa, rápido. Papai mandou que ele se fosse e começou a rezar sem parar, enquanto ordenava ao espírito que fosse embora, em nome de Jesus. Depois de muito tempo, o copo parou. Estávamos brancos e trêmulos. Dormi muitas noites na cama deles. Passei a gostar mais da minha égua campolina chamada Bailarina. Papai proibiu aquela brincadeira em casa, terminantemente. Jogou até o tal copo fora. Nenhum ouro. Nada. Voltamos para a nossa vida normal e hoje rimos muito dessa história.
Hoje entendo o que se passou. Fomos vítimas de espíritos galhofeiros, que deviam rir de nós o tempo todo. Papai morreu católico, mas no fundo sabia bem da existência dos espíritos. Só não queria dar o braço a torcer. Mamãe não se deixava enganar, pesquisava. Eu, depois de adulta, tornei-me espírita e sei bem do que falo. E como sei! O ouro deve ter ficado no cosmo. Quem sabe, um dia, vamos achá-lo por lá.
Ainda bem que já fui à Disneyworld!
Cláudia Villela de Andrade