Traição

Minha infância foi vivida entre um delicioso subúrbio do Rio de Janeiro e um "vilarejo" na cidade de Niterói, num casarão onde viviam meus avós e seus nove filhos. Era um lugar paradisíaco onde as trocas de gentilezas eram motivos de constantes alegrias. Festas de rua, quermesses na igreijinha, enfim, não poderia na minha concepção infantil existir no mundo um lugar melhor do que aquele. Não havia briga, sequer discussão  tola. Tudo era pura paz.
Ao lado de vovó, viviam D. Rita e Seu Giuseppe, que eram considerados o casal mais apaixonado da redondeza. Só saíam de mãos dadas e  trocando beijos. Era um tal de queridinho pra lá, amorzinho pra cá, que certamente causava inveja aos  outros casais, menos ardorosos.
Certo domingo, o casal vai para Cabo Frio. Lá, Giuseppe tem um enfarte fulminante. Foi uma comoção geral a morte dele. No velório toda a comunidade presente. D. Rita, inconsolada. Ele tinha apenas 37 anos e em pleno vigor.  Os dias  passaram e os irmãos de Giuseppe decidem contar a ela o caso que ele mantinha com Cláudia, a bela italiana, solteira, de 27 anos. D. Rita revoltou-se e os expulsou de casa, considerando uma afronta ao santo nome de Giuseppe.
No Dia de Finados, ela se prepara e vai levar flores ao cemitério  para prestar uma homenagem ao amado . Lá chegando vê a sepultura coberta de flores frescas e um cartão com os dizeres "Meu amor é eterno". D. Rita imediatamente liga os fatos.
Lembra que  Cláudia freqüentava  a sua casa e após a morte de Giuseppe foi espaçando as visitas até   parar de  cumprimentá-la. Ela se intrigou com essa reação, mas o que podia fazer? Junto a  isso, a  confissão dos irmãos. Por que  o fariam  se não fosse verdade?  Agora essa prova conclusiva em pleno cemitério em Dia de Finados.
Rita enche-se de revolta.
Outra tragédia abalaria o vilarejo tão acostumado a tranqüilidade. Seu Nonô, o dono do armazém ao colocar latarias nas pratelerias, despenca da escada, bate com a cabeça no chão e três dias depois falece. Mais uma tristeza infinita para aquele pessoal tão solidário.
Lembro-me nitidamente do velório. Quis acompanhar minha avó. Peguei um terço fingindo rezar. Nunca entendi essa reza de terço, mas sempre achei bonito aquelas senhoras com véu, mexendo a boca e marcando o terço com os dedos... coisa mais bonita! Minha avó não me permitiu véus.
Certa hora, D. Rita se levanta, vai até ao caixão e fala com o defunto. Na minha inocência perguntei a ela o que disse a ele. Ela respondeu para que todos ouvissem: "Falei para Nonô dar um recado a Giuseppe. Dizer a ele que descobri sua traição e que me espere, pois quando eu chegar lá, vou dar uma boa surra nele."
Fiquei abobada. Não sabia sobre esse intercâmbio. Eles levavam recados? A gente podia fazer isso? Fiquei animada. Minha avó pediu que eu me calasse pois ali era local de respeito.
Fiquei pensando... minha avó já se foi. Certamente contou tudo a Giuseppe e com sua sabedoria, já deu as dicas para amaciar Rita quando ela chegar.
No dia do jogo Brasil- Inglaterra fui ao casarão visitar minhas tias. Vi Cláudia na varanda fazendo crochê. Ainda bela, nos seus setenta e poucos anos. Mulher insinuante, lembro bem. Ainda conserva aquele ar sensual por incrível que pareça.
Estou intrigada. E se Cláudia chega antes de Rita?
Não vai haver guardião celestial que segure essa  história! Ou será que lá a gente pode ter quantos companheiros quiser?

Belvedere

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