Escutei algumas análises sobre meu texto, a forma, a rima, a informação. E me surpreendi com o que eu mesma não sabia que havia escrito
Lancei meu segundo livro recentemente. E após as festas de lançamento, uma em Belo Horizonte, minha terra, e uma em São Paulo, terra dos amigos, tive a oportunidade de reencontrar num bar pessoas que compraram meu livro.
Enquanto eu me esforçava para, mineiramente, não ser a atração da festa, algumas pessoas abriam despudoradamente meu livro na minha frente e liam, liam, viravam as páginas depois de lamber os dedos, mostravam poemas umas para as outras, riam, falavam, gesticulavam e, em seguida a essa operação quase sensual, me olhavam, num movimento voyeur e violador. Eu me constrangia. Tinha medo de que me perguntassem: “o que você quis dizer?” Pergunta indecorosa, indecente. Eu não quis dizer, mas vão dizer que eu disse. E eu me furtava àquele contexto em que me sentia como se me arrancassem a roupa.
Que sensação intrigante ser lida diante de mim mesma. E escutei algumas análises sobre o texto, a forma, a rima, a informação. E me surpreendi com o que eu mesma não sabia que havia escrito. E comecei a me sentir lida. Como se fizesse um strip tease meio forçado sob os olhares seduzidos de guerrilheiros armados até às lentes. E eu me desvestia quando alguém sacava: “este poema deve ser pra Fulano”. Ah, vão descobrir meus amores! Vão descobrir cada fracasso! E se sacarem que esse romance eu não cheguei a viver?
E muito da interpretação dos textos era influenciado pela
forma do livro. Mesmo que o leitor leigo não perceba, a capa, a
dedicatória, as epígrafes, o tipo de letra, a textura do
papel, tudo isso interfere na leitura, nas sugestões, mediando texto
e
leitura, autor e leitor. E meu editor, um cafetão declarado,
leu meu texto e projetou graficamente o livro para que ele fosse lido como
um objeto de sex shop. Uma capa misteriosa, sombria, meias luzes, uma letra
sinuosa, uma textura áspera no papel, um tamanho muito portátil,
vinhetas de mulheres dominadoras. Meu editor, quase co-autor, juntamente
com meus leitores, co-escritores de uma obra sempre inacabada e atualizável
a cada nova leitura.
Eis a importância do editor. Ele lê o texto original, cru, sem roupagem, e interpreta como um leitor quase comum. A porção incomum de sua leitura é que, a partir dela, o texto ganhará forma de livro e aí chegará ao leitor comum já cheio de interferências, já carregado de uma leitura editorial, de uma dedicatória entreguista, de uma epígrafe orientadora, de vinhetas e ilustrações sedutoras, de uma capa intrigante. De Certeau e Chartier sugerem que um livro e um texto não são a mesma coisa. Assim como um texto e um hipertexto, como o que você está lendo, nãosão a mesma coisa.
Ler é uma atividade. O leitor recria o que lê a partir de sua vida pregressa como leitor, como ser humano, como ser vivo. E ao autor cabe entregar-se aos olhares lascivos de quem o toca com os olhos.
Publicar textos, até o século XVII, era escrevê-los e replicá-los manualmente. Mas falar textos em público também era publicar. Depois de Gutenberg, publicar passou a ser também tornar livro, distribuir códices. E hoje eis mais um meio de publicação, a internet.
E agora que já passei pela “primeira vez”, fruo este momento em que o leitor me lê e me observa nos movimentos do meu texto. Com a sinuosidade e a insinuação de quem, de leve, abre as presilhas de um sutiã, deixa cair a toalha ou desabotoa uma camisa de casas bem abertas. Eis a sensação de ser lida. Eis a sensação de deixar-me ler. Podem entrar, a porta está aberta.
Ana Elisa Ribeiro