O mendigo, a tigela e o bastão

             Tive de pular rapidamente para o lado, pois um carro em alta velocidade jogou uma cortina de água na calçada do ponto de ônibus onde me encontrava.
            Corria o ano de 1984, e aquela era uma típica noite de inverno em Belo Horizonte. Uma chuva fina e persistente, aliada a um vento cortante, acentuava em muito a sensação de frio.
            Naquele tempo, o clima da capital mineira ainda era tipicamente de montanha, com estações bem definidas, o que hoje, infelizmente, não podemos mais atestar em função do excessivo aumento da  poluição e da destruição das áreas verdes que circundavam a cidade.
            Era um domingo chuvoso, e eu acabara de sair de um encontro com um grupo de amigos, que se reuniam para estudar e praticar algumas técnicas de meditação transcendental.
            Confesso que, desde tenra idade, sempre fui apaixonado pelas tradições filosóficas do oriente, tendo estudado apaixonadamente o hinduísmo, o budismo e o taoísmo. Talvez  pelo meu jeito um tanto zen de encarar a vida, os ensinamentos de Krishna, Buda e Lao Tsé  encontraram em mim um terreno extremamente fértil para proliferarem, ao lado dos ensinamentos do Mestre Jesus.
            Já pelos lados do ocidente, sempre nutri uma atração irresistível por São Francisco de Assis, cuja personalidade invulgar, exerceu sobre a minha juventude, uma poderosa influência, sendo o responsável direto por uma série de mudanças em meus valores de vida. Sua pobreza voluntária, que emocionava até os corações mais empedernidos, se assemelhava em muitos aspectos, às técnicas contidas nos ensinamentos das filosofias orientais que nos mostram como exercitar o desapego, em contraposição aos malefícios do apego, fonte geradora de grande parte do sofrimento que assola a sociedade atual em que vivemos.
            Na reunião daquela noite fria, havíamos tido a oportunidade de escutar uma palestra de um monge zen budista. Dotado de uma serenidade quase palpável, que emocionou a todos nós, o monge falara sobre a importância da simplicidade e do desapego em nossa vida diária, como forma de trazer harmonia à vida do homem moderno, sempre complicada em função de suas intermináveis ansiedades e desejos. Seu intento era mostrar que, a medida em que nos libertamos interiormente das nossas posses, vamos também nos esvaziando do apego, e, ao mesmo tempo, começamos a ser preenchidos pela paz que tanto almejamos. Usando metáforas para exemplificar suas idéias, ele analisou a vida simples dos monges budistas no oriente, que tinham como posses, apenas a roupa do corpo, uma tigela para receber a comida doada por corações generosos e um bastão para se apoiar durante as longas viagens empreendidas com o objetivo de divulgar os ensinamentos de Buda. Vivendo com tão pouco do ponto de vista material, mesmo assim, eles haviam conquistado o tesouro da verdadeira felicidade, que reside dentro e não fora de nós.
            Parado ali sozinho, naquele ponto de ônibus na avenida do Contorno, em pleno coração do tradicional bairro Floresta em Belo Horizonte, em meio a um frio de quase 15 graus, eu era somente um estudante de engenharia elétrica, no auge dos seus dezoito anos, que buscava  associar e reunir todas aquelas idéias em algo verdadeiramente prático, que acrescentasse um sentido maior à minha vida.
            Completamente absorvido nesses pensamentos, de repente, assustei-me ao ver surgir da penumbra da noite um mendigo quase desnudo, trajando apenas um calção sujo e rasgado.
            Andava descalço e com extrema dificuldade, e tremendo de frio apoiava-se com a mão direita em um bastão, trazendo na esquerda uma pequena lata de cera à guisa de uma tigela.
            Fitei-o atônito, e não pude deixar de sentir em meu coração, a pulsação do intrigante sincronismo daquele momento.
            O homem era de meia idade, tinha barbas longas por fazer e os cabelos desgrenhados caiam-lhe nos ombros.
            Contudo, na escuridão do seu rosto sulcado pela miséria e penúria, brilhava um sorriso cativante que refletia a mais legitima expressão de liberdade, e que me atingiu em cheio, destruindo todas as minhas defesas que aquela altura já estavam armadas..
            Sem dizer uma só palavra,  ele  se aproximou sorrindo e estendeu a tigela em minha direção.
Àquela época, não era do meu feitio dar dinheiro aos pedintes na rua, e por isso olhei para os lados à procura de uma lanchonete aberta em que eu pudesse lhe comprar um lanche, mas como eram 20:00 horas de um domingo chuvoso e frio, todo o comércio local já estava fechado.
            Completamente desconcertado, diante do brilho daquele sorriso que parecia interminável, e sem saber o que fazer, de relance olhei para o meu blusão de lã feito à mão, presente da minha mãe, e imediatamente percebi o terrível contraste entre o meu aconchego e o dorso completamente nu do mendigo.
Senti que a vergonha tomava conta do meu rosto.
            O pobre homem, por sua vez, que possuía um olhar muito atento, acabou percebendo em meus olhos todo o constrangimento que naquele instante eu trazia na alma, e tentando me deixar à vontade, sorriu e abriu os braços, apoiando-se no bastão, com a intenção de demonstrar que o frio não o incomodava.
            Subitamente, fui tocado de uma compaixão quase franciscana, e retirei a blusa, dele me aproximando.
            Ofereci-lhe o agasalho, e neste instante foi ele quem se surpreendeu.
            Tomei gentilmente das suas mãos a tigela e o bastão e ele visivelmente emocionado, segurou o blusão com suas mãos trêmulas e descarnadas.
            Com um olhar súplice, uma vez mais ele me fitou, como se buscasse meu consentimento para vestir a roupa. E dessa vez, fui eu quem sorriu buscando encorajá-lo.
            Naquele momento mágico,  percebi que a vida me proporcionava uma lição prática da máxima franciscana que diz: “– É dando que se recebe”.
            Enquanto o mendigo recebia um pouco da minha riqueza pobre, simbolizada naquela blusa, por sua vez ele me dava o muito da sua pobreza rica, simbolizada no sentimento de liberdade e desapego que me invadiu, enquanto segurava aquele bastão e aquela tigela.
            Na fugacidade daquele instante, o vazio da tigela resumia a libertação da posse e o apoio do bastão a capacidade de continuar caminhando em direção à verdadeira felicidade.
            À medida que ele vestia o blusão, notei que duas pérolas cintilantes rolaram pela sua face, para depois desaparecerem no revolto oceano das suas barbas.
            Devolvi-lhe a tigela e o bastão e dei-lhe um comovido e espontâneo abraço, gesto este que ele correspondeu encostando suavemente sua testa na minha.
            Pude então sentir como é puro o hálito da felicidade que exala dos  corações, quando estes não estão corrompidos por segundas intenções.
            Depois de alguns minutos em que nos olhamos em silêncio, ele se afastou, andando vagarosamente pela calçada. De vez em quando, ele se virava  e acenava com a mão que segurava a tigela, até desaparecer na escuridão.
            Durante todo o tempo, não trocamos uma só palavra, e mesmo assim, por meio da misteriosa linguagem do silêncio, nos acrescentamos um ao outro.
            Com os olhos ainda úmidos de emoção, percebi que meu ônibus estava chegando. Enxuguei rapidamente o rosto e fiz um sinal com a mão para que o coletivo parasse.
            Quando a porta abriu, subi os degraus e entrei, exibindo um largo sorriso, pois carregava dentro de mim uma sensação de paz e liberdade que jamais havia sentido antes.
            Os passageiros me olharam desconfiados,  pois não conseguiam entender como aquele jovem trajando apenas uma fina camiseta de malha, podia demonstrar tanta alegria, diante daquele intenso frio.
            Somente anos mais tarde, é que eu pude ter a completa noção de como aquele dia tinha sido especial para mim pois, se para o padrão ilusório e impermanente do mundo eu havia perdido um blusão de frio, para a dimensão real e permanente, da tigela e do bastão, eu ganhara a própria vida.

Emmanuel Chácara Sales

« Voltar