Ao saber da nomeação do professor Roberto Átila Amaral Vieira, para o cargo de ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula, não pude deixar de considerar curioso que mais uma vez as coincidências da vida me deixassem ao alcance das palavras, propostas e atitudes de uma pessoa que, de um modo um tanto incomum, inúmeras vezes esteve próximo do meu caminho, muito contribuindo para minha formação.
Meu primeiro contato com Amaral Vieira se deu por sua obra. Vivia aquela fase crucial da adolescência, no meu caso contemplada pela vigência do AI-5, a legislação de censura e terror que se sobrepôs a todos os direitos constitucionais. Estávamos entre 1970, 1971, por aí. Apesar de tudo, no Curso Clássico, do então Colégio Mello e Souza, em Copacabana, tínhamos aulas de Filosofia.
Nessa época eu era um jovem de idéias conservadoras. Viera da Zona Norte para a Zona Sul do Rio de Janeiro, entre 1967 e 1968. Dos bairros de Bonsucesso, Ramos e Olaria, transportara minha alma introspectiva e arredia, a dificuldade de adapatação a novos ambientes, a torcida pelo Vasco da Gama e a fé nos ensinamentos da igreja católica, apostólica e romana. Despolitizado, entre os 15 e 17 anos não conseguia perceber claramente o que verdadeiramente constitui um Estado, o grau de sua complexidade, seu funcionamento sistêmico e o quanto semelhante estrutura de poder afeta a existência de cada indivíduo, até em detalhes dos quais muitos nem se dão conta.
Minha professora de Filosofia era uma senhora de voz pausada e olhar tão vivo quanto bondoso, que mudaria para sempre minha vida. Na época, sequer dispunha de suficiente capacidade para avaliar o risco a que se expunha, simplesmente ao indicar para saltitantes meninos e meninas da Zona Sul certas leituras.
De início, não parecia que fosse acontecer muita coisa. Ela começou a falar nos Pré-socráticos. O assunto era interessante, mas não me causou um impacto naquele momento. Não estava preparado. A verdadeira importância desses antigos gregos somente viria a compreender e apreciar muitos anos depois.
Porém, um dia ela entra na sala e nos recomenda um livro intitulado "Sartre e a Revolta de Nosso Tempo", assinado por R. A. Amaral Vieira. A respeito da obra, deveríamos apresentar um trabalho escrito.
Tínhamos um mês para ler o livro e fazer o texto, mas eu o li em apenas dois dias, inteiramente fascinado pelo conteúdo e pela nova perspectiva que representava para mim a descoberta do pensamento de Sartre. Portanto, o primeiro livro de filosofia que li na vida, de ponta a ponta, com enorme interesse e que sacudiu minhas estruturas fora escrito pelo atual ministro da Ciência e Tecnologia. Alguns dias depois, a mesma professora leva para a sala uma revista na qual havia um artigo escrito por um importante questionador de nosso tempo: Herbert Marcuse. Ela se dispunha a emprestar a quem desejasse ler. Fiquei o tempo todo de olho na revista, na expectativa de que ninguém a quisesse, e quando percebi que ninguém iria mesmo pedir, apresentei-me.
As aulas e as duas leituras desencadearam uma sede de entendimento que perdura até hoje. Infelizmente não tive o bom senso de escrever em algum lugar o nome da mestra, cujo rosto, gestos e palavras recordo até hoje, com gratidão.
Porém, pelo menos não me esqueci do nome de Amaral Vieira. Assim, quando alguns anos depois tornei a encontrar um livro seu, não hesitei em adquiri-lo. Estava ainda estudando Direito, na UFRJ, mas já tencionava fazer Comunicação Social. Por volta do último ano do curso jurídico, paradoxalmente quase todo meu investimento em livros era na área da Comunicação. Quando comecei o novo curso, constatei que já lera pelo menos a metade das obras que seriam pedidas. E, dentre as que comprei por livre iniciativa, lá estava "Comunicação de Massa: o impasse brasileiro", uma coletânea de ensaios, da qual R. A. Amaral Vieira participava e era o coordenador.
Mais adiante viria a conhecer também "O Futuro da Comunicação: da galáxia de Gutenberg à aldeia global de Mcluhan", editado pela Achiamé. Uma obra fascinante, ricamente ilustrada, que conta a história da escrita desde suas origens aos tempos mais recentes, discutindo seu futuro com base numa perspectiva social, considerando a tecnologia então existente. Editado pela segunda vez em 1981, não poderia alcançar o extraordinário impacto causado bem mais tarde pelo advento da Internet. Entretanto permanece atual no que explana sobre o confronto da escrita com as demais mídias eletrônicas audiovisuais. Além disso, possui um sentido histórico muito interessante por revelar os efeitos das novas tecnologias sobre a nossa cultura, bem como pelo registro que realiza das preocupações da "intelligentsia" brasileira sobre o assunto.
Porém, surpresa mesmo foi quando no início de um dos semestres encontro Roberto Átila, ao vivo e em cores, na minha sala de aula nas Faculdades Hélio Alonso. Agora ele era um de meus professores. Suas aulas, brilhantes, versavam sobre ciência, filosofia e comunicação. Não demorou muito para que o professor confirmasse o bom escritor que aprendera a admirar. Porém, agora era diferente, era especial. Ele estava ali, bem à minha frente, e isso me permitia fazer-lhe perguntas, esclarecer aspectos, remover dúvidas sobre detalhes.
Não que o interrompesse muito. Evitava perturbar o fluxo de seu raciocínio, sempre caracterizado por enorme clareza e funda penetração. Além disso, apesar de estar com 21 anos, certos traços de minha personalidade não se haviam alterado muito. Detestava chamar a atenção sobre minha pessoa, ser alvo de olhares e comentários, mesmo quando favoráveis. Talvez por isso nunca me tenha aproximado mais, nunca lhe tenha revelado a importância que seus livros tiveram para mim. Entretanto, não deixava de perguntar quando sentia ser realmente importante, relevante para o entendimento. E a resposta era sempre enriquecedora.
Penso que devo a Amaral Vieira a compreensão mais profunda do espírito que norteia a filosofia. De certo modo, e sem o saber, ele completava agora, em presença, todo um ensinamento que se iniciara muitos anos atrás. Depois dele, muitas e muitas leituras vieram, inúmeras reflexões, diversos modos de aprendizagem, alternativas de pensamento. Todavia, devo reconhecer, da leitura de seus livros e de suas aulas nasceu a estrutura mental que me permitiria a compreensão do que viria a ler dali por diante no campo da filosofia e das ciências sociais. Devo-lhe ainda o desenvolvimento de uma melhor capacidade de compreensão do ensinamento de outros mestres inesquecíveis daquela época, como Nilson Lage, Artur Omar, Neiva, Carlos Henrique Escobar, Ivan Cavalcanti Proença, André Valente e tantos mais.
Depois da faculdade, ainda uma vez reencontraria Amaral Vieira, nos anos 90, dessa vez na forma de uma mensagem de agradecimento pela remessa de publicações literárias do meio alternativo impresso. Durante um bom tempo lhe remeti jornais e informes literários, até que por uma dessas circunstâncias da vida ocorreu uma interrupção, perdi o contato.
Daí, é com surpresa e emoção que o vejo agora assumir tão importante cargo. Roberto Átila é autor de mais de 20 livros. Ao longo dos anos, teve significativa atuação política, desde os tempos da ditadura, ao lado de expressivos nomes de nossa intelectualidade, combatendo a opressão e lutando em favor das causas e partidos voltados para os interesses da sociedade. Faço votos que essa personalidade que por tantas vezes influenciou favoravelmente minha vida, e a quem, de certo modo, ajudei a eleger, realize um grande ministério à frente da Ciência e Tecnologia brasileiras, tão carentes de amparo e incentivo.
Ricardo Alfaya
Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 2003