DUAS PEDRAS, DRUMOND
"No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca mais me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra".
        Carlos Drumond de Andrade
Um dos maiores sonhos de todo médico brasileiro é participar, nem que seja por pouco tempo, das atividades diárias de um Hospital de Primeiro Mundo. E eu participei! Só que não foi como médico, mas na condição de paciente. Em Maio de 2001 tive uma crise de pedra nos rins em Viena d’Áustria, encontrava-me sozinho, o meu "seguro saúde" só servia para segurar os donos dele, e fui internado em caráter emergencial, às expensas do governo austríaco (mas disto só fiquei sabendo depois), no Setor de Urologia do Kaiser Franz Josef-Spitals, o maior e melhor hospital da capital da valsa. Só poderá imaginar o que significa uma crise de cólica renal quem acaso tenha passado por uma delas. Imagine uma bola de bilhar incandescente tentando forçar uma descida, a qualquer custo, através das suas entranhas, e terá uma idéia da intensidade da dor. Já comentei os aspectos favoráveis daquela imprevisível circunstância; hoje pretendo comentar o seu lado trágico. Para caracterizar os primeiros, consegui criar uma sentença que resume tudo aquilo que talvez não pudesse expressar através de mil palavras: "Dizem que todo cidadão possui duas pátrias, aquela onde nasceu e a França. Creio ser a exceção a confirmar esta regra, pois a minha segunda pátria é a Áustria, uma vez que foi lá onde renasci." Todavia, estaria sendo insincero se ousasse declarar que me encontrava hospedado num hotel de luxo em gozo de férias enquanto lá estive hospitalizado. Se não bastassem as dores terríveis que senti, quase tudo ao meu redor também contribuía para incrementar o meu sofrimento: a solidão praticamente absoluta; a dificuldade de comunicação; os meus hábitos diferentes daqueles dos meus companheiros de enfermaria; a incerteza sobre a evolução e o desfecho que se seguiria àquela doença; a falta de apoio de alguém conhecido; a freqüência com que precisava de ajuda para trocar o "papagaio" cheio de urina, pois estava sob efeito de remédios diuréticos; o constrangimento de estar incomodando as pessoas com os meus gemidos e até gritos de dor, com a particularidade agravante de ser um estrangeiro; a minha desvinculação do grupo de brasileiros que participariam da excursão ao leste da Europa; a preocupação com a enorme conta hospitalar que tinha certeza que me seria cobrada e eu não tinha como pagar; o receio de enfrentar uma cirurgia sob anestesia geral; o impacto terrível que foi o meu diagnóstico radiológico (havia duas pedras encravadas, uma de cada lado, a meio caminho entre os dois rins e a bexiga); os formulários que tive de assinar isentando médicos e hospitais de qualquer complicação ou conseqüência fatal do tratamento cirúrgico a que seria submetido; a angústia pela falta de notícias dos meus familiares; enfim, o medo do desespero em que teria caído se não tivesse conseguido forças – advindas não sei de onde – a fim de me controlar. Entre os motivos das minhas preocupações havia um que, apesar de não ter - pelo menos para mim - a menor importância, estranhamente era aquele que mais me fazia sofrer: como seria repatriado o meu corpo, pois avaliava como altíssima a probabilidade de vir a morrer. Minha bagagem havia ficado no hotel com todos os meus pertences – Passaporte e Traveller’s Checks inclusive - e foi trazida pelo Guia da Agência de Viagens antes de se despedir de mim. Mas eu não tinha forças sequer para abri-la. Além da doença estava sem me alimentar e sem dormir há mais de três dias. Fui operado, sob anestesia geral, no terceiro dia de internamento. Ao recuperar a consciência me encontrava num ambiente que, a princípio, me pareceu um mundo extraterrestre. Pessoas estranhas murmuravam palavras completamente ininteligíveis e se movimentavam ao meu redor, mas sequer me dirigiam um olhar; uma luz misteriosa vinda de uma fonte ignorada me impedia de saber se era dia ou noite; meus vizinhos de leito, estes sim, me olhavam com curiosidade e comentavam entre si qualquer coisa sobre mim, mas não podia imaginar do que se tratava. Todas as pessoas, inclusive os doentes, estavam vestidas de branco e eu insistia em associar os seus gestos, atitudes, movimentos, semblantes e imagens a filmes, programas de televisão e livros onde já assistira ou lera certas experiências de pessoas que dizem ter morrido e voltado a viver. A última vez que tinha me alimentado foi no avião entre Zurique e Viena, havia mais de setenta e duas horas. Não sentia propriamente fome, mas um vazio no estômago quase doloroso reclamava a ingestão de algum alimento. Como se adivinhasse aquela sensação, alguém pôs na minha boca um canudo do qual suguei um líquido que muito remotamente sugeria suco de laranja, mas era de um sabor fora do comum como nunca havia provado antes. Foram cerca de cinco horas que passei sob o efeito desta estranha sensação. Depois disto avistei Doktor Harmurth – a Assistente do médico que teria me operado – Doktor Kassati. Só a identifiquei porque ela havia me visitado cerca de uma dúzia de vezes a fim de se certificar de que eu entendera bem os detalhes do procedimento cirúrgico ao qual seria submetido. Falava com ela em inglês mas escutava a sua fala numa entonação esquisita, como se fora a voz de alguém do outro mundo. "Foste operado" e um eco repetia: "Foste operado... Foste operado... Foste ope... rado, rado, rado". Mais tarde uma moça de mais ou menos 18 para 20 anos veio fazer o meu asseio. Todo o pessoal de enfermagem era constituído de mulheres muito jovens. Como a sondagem da bexiga me causasse muita dor, levei a mão ao pênis e ela bateu na minha mão e me repreendeu com veemência. A permanência naquela UTI – presumia que fosse isto – pareceu uma eternidade. Depois fiquei sabendo que passara ali parte da tarde e a noite inteira. Completavam--se, então, quatro dias que não ingeria nenhum alimento, com exceção daquele líquido com leve sabor de laranja e açúcar. Pela manhã ia sendo transportado numa cadeira de rodas em direção à enfermaria quando um médico de cerca de trinta e poucos anos me interpelou: "Where are You?" "In a hospital, I suppose"; "Where are You going?" I’d like to go to Budapest, but I’m not sure about that" "Budapest?" – e se ria - When do You intend to go to Budapest?" "YESTERDAY night"; "YESTERDAY?" E soltou uma gargalhada que comparei com aquelas que os demônios devem disparar no inferno quando sentem prazer em presenciar o sofrimento dos condenados. "I’m sorry, Doctor. Pardon me for my mistake, please. I intended to say TOMORROW night. I’m too weak to talk so well." Ele nem se interessou em escutar as minhas últimas palavras. De volta à enfermaria a tortura não foi menos cruel. Mandaram-me tomar uma ducha, escovar os dentes e me barbear mas não conseguia sequer me sentar. Continuava sem forças para abrir a minha mala a fim de retirar pelo menos a escova de dentes e o barbeador; não era capaz disto nem obtinha ajuda de ninguém. A retirada da sonda foi um martírio quase tão intenso quanto as cólicas renais; apenas mais rápido. Por volta do meio dia chegou junto ao meu leito uma equipe médica chefiada por Doktor Harmurth – a assistente do médico que me operou – a fim de dar a minha alta para aquele mesmo dia. Respondi que sentia muito, mas não teria condições de deixar o hospital naquele estado. Implorei por mais vinte e quatro horas a fim de tentar me recuperar. Felizmente foi o que ocorreu depois de me alimentar e de uma noite de sono após mais de noventa horas sem dormir, se não for computado o tempo em que estive anestesiado. O dia seguinte era um sábado. Amanheci bem melhor e quase sem dores, exceto um pequeno incômodo – pequeno se comparado àqueles que passei nos últimos dias – produzido por dois drenos em forma de duplo J, inseridos entre os meus rins e a bexiga e que só foram retirados aqui no Brasil, sessenta dias mais tarde.

Raymundo Silveira

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