(AOS DOIS HOMENS QUE AMEI)
Depois que eu e Francisco por fim entendemos como definitivamente rompido
nosso relacionamento, as coisas minhas do coração andam em
total harmonia, não a harmonia feliz de paixão correspondida
ou amor tranquilo e seguro, mas a harmonia do silêncio do vazio.
Bem, é verdade que antes de Francisco, este silêncio também
era a única paz que eu tinha e até mesmo duvidava ser possível,
alguém que viesse a colocar novamente trilha sonora em meu coração.
E de repente, esta ausência de música me faz pensar sobre
as minhas teorias das várias formas de amor e a concentração
delas todas num só, que eu chamo de Amor Sublime...
Desde a morte de meu pai, de alguma forma endureci para a vida tão
imensamente, que dificilmente alguma coisa me seduz. É como se a
graça das coisas tivesse deixado de existir. Pisar em um palco,
que sou atriz, gerir os negócios, que sou empresária e todos
os outros aspectos da minha vida social e profissional se tornaram, misteriosamente,
difíceis e complicados na ausência do paterno e a necessidade
me obrigou a exercitar a frieza, me fez ainda mais exigente e acabou por
tornar estas tarefas mecânicas e automáticas sem o mais leve
sabor da graça. Antes não. Antes pequenas coisas como tomar
sorvete tinham graça, não tomar também. Acontece que
estas tarefas não apenas fazem parte da vida, elas são a
vida e ter automatizado e mecanizado a vida tendo consciência disso,
a torna ainda mais sem graça.
Meu pai fazia do nada algo especial, uma capacidade que raros seres
humanos possuem. Era quase impossível vê-lo sentir-se derrotado
ainda que em frente ao fracasso iminente, mas não é esta
força, que eu idolatrei e admirei, o que faz falta, a força
de meu pai diante das situações difíceis é
a mesma força que tenho hoje, sem me sentir derrotada ainda que
esteja, o que faz falta é parceria, a cumplicidade, é saber
que não estamos sós e o mais importante e raro - o amor desinteressado.
As pessoas costumam dizer que quando se ama alguém é
quando precisamos daquela pessoa para sermos felizes. Eu tenho uma opinião
oposta; quando eu não preciso de alguém e quero estar com
este alguém para fazê-lo feliz, é porque o amo. É
um amar totalmente desinteressado, porque preciso daquela pessoa para absolutamente
nada, nem mesmo para ser feliz, mas ainda assim, quero estar ao seu lado,
quero ajudá-lo, quero compreendê-lo, quero confortá-lo,
quero dar, estar disponível, oferecer, ofertar. Este amar se dá
na ausência do egoísmo e então o chamo de amor altruísta.
Assim, altruisticamente, eu e meu pai nos amávamos e então,
a vida tinha graça e tomar um sorvete ou não era sempre muito
divertido. O aspecto sexual inexistente neste amor não era problema
já que meu pai o alcançava com minha mãe e eu com
meu namorado.
Antes de meu pai morrer eu nunca tive que procurar alguém a
quem eu amasse e que me amasse altruisticamente, apenas alguém que
eu amasse e que me amasse sexualmente, e veja bem, o amor sexual não
é menos valioso que qualquer outro, porque para se amar sexualmente,
outras tantas complexas coisas estão envolvidas, que às vezes
é mais difícil encontrar um amor sexual, que um amor altruísta.
Bem, agora meu pai é morto e eu tenho que encontrar ambos. E os
quero juntos. A reunião destas duas fortes facetas amorosas é
o que chamo de Amor Sublime. Quando duas pessoas que amam altruística
e sexualmente um ao outro se encontram, experimenta-se o êxtase da
completação; quando tudo passa a ter graça e as coisas
rotineiras que não apenas fazem parte da vida, são a vida,
deixa de ser automatizado ou mecanizado. O êxtase da experiência
do encontro entre duas pessoas que só querem dar e que se amam sexualmente
é que ambas receberão sempre em todos os sentidos sem o risco
do desgaste pelo tempo.
Ter perdido meu pai, meu amor altruísta, fez todos os aspectos
da minha vida sem graça é óbvio que nenhum amor sexual
é imortal sem a graça. Isto faz-me concluir que o amor sexual
não resiste sem o altruísta embora este exista independente
daquele.
Cedo ou tarde eu teria que partir em busca do Amor Sublime, eu sei,
afinal, embora o amor altruísta traga a graça não
traz o sexual e todo ser humano precisa destes dois amores para estar em
êxtase e como sou uma pessoa, que nunca se satisfez com metades,
menores ou menos, eu sempre soube que a minha busca seria a busca pelo
êxtase, mas convenhamos que achar o Amor Sublime onde não
há graça é muito mais difícil e complicado
de achá-lo quando ela existe.
Na época em que encontrei Francisco, minha busca pelo êxtase
- o Amor Sublime - estava suspensa. Decididamente eu não conseguia
pensar na hipótese de encontrá-lo mas alguma coisa aconteceu
entre nós dois, que sem que eu percebesse, me atirou de volta à
busca, com esperanças renovadas e certa que o êxtase estava
mais perto. À princípio, Francisco foi um amigo sem rosto,
sem corpo, sem sexo, para quem eu contava sobre a falta de graça
que sentia, mais tarde eu percebi que muita graça passara existir
nas coisas depois de o ter conhecido e ainda mais tarde eu percebi, que
Francisco tinha não só um nome, mas também um rosto,
um corpo, cheiro, gosto e sexo. Quando se deu a constatação
que ali havia não apenas dois ouvidos, mas um homem e um homem que
me fazia rir, que me fazia ver graça em tomar sorvete ou não,
que me entendia, compreendia, que se importava, que questionava, que queria
saber de mim, me ajudar, me cuidar, de quem eu queria saber, a quem eu
queria questionar, perguntar, cuidar, quando constatei, que me dava prazer
o prazer que eu o dava, eu reconheci a paixão.
A paixão é a primeira graça que o amor nos concede
e é o que põe graça em quase todo o resto. É
se pegar pensando no outro nos momentos mais inusitados, sentir-se triste
no momento do até logo, do até amanhã, uma vontade
que o momento em que estão juntos não passe, curiosidade
sobre as coisas do outro, escolher a roupa e o perfume em função
do outro, é sentir vontade de compartilhar as coisas mais bestas,
é o que faz um sorvete de baunilha diferente do outro. A paixão
é o que desperta o amor sexual.
Apaixonada por Francisco, o próximo passo seria descobrir amá-lo
ou não sexualmente e a despeito de como eu me sentia antes de encontrá-lo,
eu o amei profundamente. Agora, tudo que eu queria, para chegar ao êxtase
era que o amor sexual resistisse ao tempo e para tal, eu teria que amá-lo
altruisticamente.
Chamo de Amor Sublime a reunião do amor altruísta, que
é o amar desinteressado, quando eu não preciso de alguém
mas ainda assim quero estar ao seu lado para dar, com o amor sexual, que
é o amor que as paixões despertam. Chamo de paixão
a primeira graça que o amor nos concede, o primeiro passo em direção
ao êxtase que é como chamo a sensação de completação
que traz o Amor Sublime, cuja busca é a razão de eu existir.
Após a morte de meu pai o único amor altruísta, que
eu conhecera até então, se foi e assim o amor sexual, que
eu sentia por meu namorado, não resistiu ao tempo e nem às
decepções, porque acredito que seja o amor altruísta
que perpetue o sexual, e que embora haja o altruísta sem o sexual
e o sexual sem o altruísta, o primeiro não morre na ausência
do segundo, mas o segundo estará iminentemente morto na ausência
do primeiro. Com a perda destes dois amores a minha vida perdeu a graça
e sem a graça, as paixões deixaram de ser despertadas em
mim, até que, um dia, conheci Francisco, que foi meu amigo, minha
paixão, meu amor sexual e a quem eu desejei, mais que a todos, que
fosse meu amor altruísta.
Às vezes penso, que o êxtase da sensação
de estar completa, que senti ao lado de Francisco, e somente ao seu lado,
durou apenas alguns dias, porque de fato o amor altruísta não
aconteceu, às vezes penso que o Amor Sublime, que encontrei em seus
braços foi somente o meu desejo e carência camuflando o amor
sexual verdadeiro e intenso, porém sempre frágil, se na ausência
do altruísta. Não tenho certeza, mas se não foi um
mero engano, uma vontade de dimensões gigantescas de amar sublimemente
eu teria que aceitar duas opções; uma que o Amor Sublime
morre e outra que podemos amar sublimemente mais que uma única pessoa
durante nossa curta existência.
Sempre acreditei que pudéssemos amar várias pessoas ao
mesmo tempo, nunca cri que sendo nossa capacidade de amor tão gigantesca,
estivéssemos fadados a uma única possibilidade de entrega
deste amor, porém, amar sexualmente mais que uma pessoa, apaixonadamente,
egoisticamente ou ainda altruisticamente é um fato mais que aceitável
tendo em vista a vasta gama de exemplos, que podemos colher do dia a dia
de qualquer ser humano, enquanto que, amar sublimemente mais que uma única
pessoa, é um ponto de vista dificilmente aceitável, para
quem, como eu, entende a dificuldade de encontrá-lo. Não
parece razoável, que poucos sejam os que encontrem o Amor Sublime
e que dentre estes poucos ainda existam os que são premiados com
este êxtase mais que uma única vez, mais que injusto com os
que passam a vida procurando sem encontrá-lo, vai muito contra as
leis da probabilidade, ainda que as combinações sejam com
repetições e mais! Não é estatístico!
Mas é verdade, conheço pessoas que
ganharam mais que uma vez na loteria enquanto a maioria ganhou nenhuma
vez.... Tornar a possibilidade de mais que um Amor Sublime por vida, real,
também me faz pensar sobre a possibilidade do "aprender o amor",
mas logo descarto a teoria que o amor se aprende, porque seria incompatível
se aprender o "Amor Sublime" sem se aprender o amor sexual e sabemos todos
que instinto é algo que não se aprende. Também
é difícil aceitar que o o Amor Sublime morra, porque nele
está contido o amor altruísta, que é o que perpetua
o amor sexual, logo, para morrer o Amor Sublime, o amor altruísta
tem que morrer para que o sexual venha a morrer e assim morra a paixão...
é muita morte para um único Amor e para quem amamos sublimamente
voltar a ser no máximo um amigo sem sexo, há de se aceitar
a fragilidade do Amor Sublime ou de imaginar uma arma muito poderosa para
destruí-lo. Não pode um Amor Sublime que é a reunião
de tantos laços afetivos fortes ser um amor frágil e nem
quem ama sublimemente, ainda que de posse de arma tão poderosa,
jamais a usaria contra aquele a quem ama altruista, sexual e por fim sublimemente.
O êxtase que conheci somente nos braços de Francisco não
foi, decididamente, o Amor Sublime que pensei ter encontrado, por inúmeras
razões que hoje estão mais que claras, mas principalmente,
porque morreu e porque dele restou nada senão a mesma sensação
de harmonia, causada pelo silêncio do vazio em meu coração,
que havia antes que eu o encontrasse. O êxtase que conheci somente
ao seu lado, ironicamente, também foi o maior equívoco que
vivi até hoje, entretanto, a força que herdei de meu pai
diante dos fracassos não me deixa sentir derrotada e serviu este
equívoco para me lançar de volta à busca que eu já
quase havia desistido.
Dizem que toda mulher procura seu pai no homem que vai escolher como
parceiro. Eu acho que não. Acho que eu procuro meu pai no homem
que escolherei como parceiro, porque foi meu pai o homem a quem amei altruisticamente
e quem me amou da mesma forma ao mesmo tempo e não é verdade
que todas as filhas do mundo experimentam este amor com seus pais. Acho
que procuro meu pai, porque foi o homem que me cuidou, que me fez sentir
segura, que esteve ao meu lado sempre, sempre, sempre, estando eu certa
ou errada, que me apoiou, que se preocupou, que perdeu noites em claro,
que sofreu com o meu sofrimento, que ficou feliz pelas minhas glórias
sem nunca, em momento algum, esperar algo em troca e então associo
o homem que ele foi ao homem que será capaz de me amar desinteressadamente
como ele o fez. Associo a figura paterna ao homem que amarei desinteressadamente,
porque foi meu pai o único homem que amei assim e esta associação
nem de longe é uma fraude, porque não procuro a personalidade
ou as feições de meu pai, procuro a sua forma de amar e de
me despertar o amor altruísta. Entretanto, não procuro apenas
meu pai neste homem, a busca é mais difícil, é mais
complexa, é ainda muito mais raro o que procuro: o êxtase
da sensação de completação que traz o Amor
Sublime, que é a reunião do amor altruísta com o amor
sexual.
Eu procuro um pai e um Francisco em um único homem, porque quero
que os sorvetes tenham gosto eterno.
Patrícia Evans