Enquanto escrevo, tenho diante de mim a série de fotografias que registra os tempos principais da primeira operação que executei. Foi ontem, mas já faz trinta e quatro anos. Hoje parece um ato tão banal quanto escovar os dentes ou me barbear, mas naquela madrugada me senti como Edison ao ver funcionar – após dezenas de experiências frustradas – a primeira lâmpada incandescente; como Pasteur ao demonstrar que o caldo de cultura não se contaminava mesmo quando exposto ao ar atmosférico, e quase corri nu, digo usando capote, luvas, máscara, gorro e tudo mais, pelas ruas desertas da cidade, a gritar Eureka, como Arquimedes ao descobrir subitamente o princípio do empuxo. Tratava-se de uma cesariana e, evidentemente, antes dela eu já havia assistido a dezenas de outras e ajudado a praticar uma quantidade equivalente, mas aquela era a "minha" cesárea! Fui eu a empunhar o bisturi; a executar as incisões; a ser seguido (e não seguir) nos meus próprios passos. Em síntese, era a primeira vez que me sentia praticando um ato o qual, quando vi pela primeira vez, quase desistia da idéia de que um dia eu próprio fosse capaz de idêntica "façanha". Este talvez seja um dos motivos pelos quais na profissão médica a fantasia caminha tão distante da realidade.
Há mais ou menos uns seis meses estive num Shoping Center e deparei com uma cena ao mesmo tempo terna, hilária, patética e ingênua. A menininha deveria ter, se tanto, quatro ou cinco aninhos e brincava com um estetoscópio de brinquedo, enquanto sua mãe dizia: "Vais ser médica, não é meu amorzinho? Já escolheste a especialidade? Serás pediatra, cirurgiã ou ginecologista?" Deu-me vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo. Ignoro a que atribuir exatamente estas ilusões, mas tenho a minha própria teoria. Como a medicina, mais do que uma ciência, é uma arte que lida com os bens mais preciosos do ser humano que são a sua saúde e a sua vida, o médico já foi considerado um semideus. É claro que isto faz parte do passado e não mais se questiona a condição extremamente deplorável de progressiva vulnerabilidade que afetou a prática da medicina na atualidade. Com efeito, se outrora a figura carismática do doutor se caracterizava pelo elevado conceito que desfrutava perante a comunidade, certas contingências de ordem social e econômica contribuíram para lhe acarretar inegável desprestígio. Assim, a profissão médica desceu do seu pedestal de glória e se postou nos mais baixos degraus dos valores que mensuram a nossa sociedade. Muitas pessoas pensam que foram os doutores quem mais perderam com isto. Ledo engano, infelizmente os mais prejudicados foram os usuários dos seus serviços, isto é, os doentes.
Outras razões que fazem da medicina uma profissão "mística" são os mistérios do corpo humano. Quando vemos abrir um abdome – e não estamos acostumados a isto – enxergamos ali expostas as nossas próprias entranhas. Já vi pessoas leigas assistirem a uma operação e confessarem depois, se acaso não desmaiaram, "cheguei a duvidar de que fosses capaz de reparar tudo aquilo, pois não acreditava que fosse possível restituir à integridade aquela aparente "carnificina". Falei que executar uma cesariana, para um obstetra experiente, seria um ato tão automático quanto escovar os dentes ou se barbear, e é quase isto mesmo. Com duas ressalvas: 1 – não costuma ocorrer nenhuma conseqüência trágica quando sangram as nossa gengivas ao escovar os dentes, e nem a pele quando fazemos a barba; 2 – para se chegar àquele quase automatismo é necessário muito treinamento. Apenas a título de ilustração, levei mais de uma semana a fim de aprender a calçar prosaicas luvas de látex e não parecer que estaria travando um duelo de capa e espada com Robin Hood. Manusear ferros e borrachas calçado com aquilo, a princípio, era como catar "chatos" com luvas de boxes, como dizia irreverentemente um meu colega. Despendi mais de trinta dias para atingir a perfeição de atar um nó cirúrgico sem parecer que estivesse a empreender uma batalha desesperada contra o tempo; enfiar um fio numa agulha – sempre calçado com as ditas luvas – era, inicialmente, mais complicado do que acertar, com uma flecha, uma maçã aposta na cabeça da minha filha caçula. Em suma, um ato que normalmente seria realizado em, no máximo quarenta e cinco minutos durou, naquela ocasião, mais de duas horas. E, apesar de todo o meu orgulho, ainda tive de escutar o comentário zombeteiro de um anestesista impaciente, pois tinha de correr para a sua próxima tarefa: "Este rapaz foi a melhor aquisição feita nos últimos anos por esta casa".
Raymundo Silveira