Em sua derradeira crônica, que foi publicada no jornal "O Estado de São Paulo", Rachel de Queiroz rejeitou a tese de que os escritores "(...) são pessoas excepcionais nascidas com o dom de escrever o belo (...) periodicamente visitadas por uma espécie de iluminação das musas (...) fenômeno a que se dá o nome de inspiração". Ela afirmou que nos escritores que ela conhecia "(...) não há nada de súbito, nem de claro, nem de fácil. O processo todo é penoso e dolorido...".
Esse seu texto de despedida é mais uma das inúmeras lições da grande mulher, que as distribuiu generosamente em setenta e tantos anos de forte presença na vida brasileira. Ela que foi sempre apaixonada e engajada nas causas que abraçou, todas sublinhadas por uma consciência social que lhe aproximou do comunismo e a transformou em agitadora política, jovem de vnte e poucos anos, apoiando Luiz Carlos Prestes na caminhada que resultou na fracassada revolução de 1935.
Sua trajetória política jamais visou a conquista de cargos e posições de poder, o que lhes fez recusar polidamente o convite recbido do Presidente Castelo Branco para ser Ministra da Educação. De outra parte seu insólito engajamento a levou a repetidos constrangimentos e até às masmorras da polícia, onde lhe fizeram dividir celas com prostitutas e assassinas. Disse-me, certa vez: "Aprendi muito com essa gente, nas prisões. (...) Não tentei convertê-las e me ajudaram a resistir aos opressores".
Nas nossas conversas ela gostadava de falar de livros, de autores e de jornalismo. No último encontro rememorou Augusto Frederico Schmidt que leu a edição pioneira de "O Quinze" (que ela pagou do próprio bolso) e escreveu famoso artigo. "Ele trouxe o livro para o Rio de Janeiro e para o Brasil", disse Rachel. Ela me pediu naquela tarde que lesse poemas do Schmidt e do Bandeira e brincou: "No meio deles encaixe os seus poemas, que o Schmidt e o Santiago Dantas elogiavam..."
Suas armas eram suas palavras, consagradas pela estréia precoce na literatura com "O Quinze", livro que publicou aos 19 anos, no Ceará, como "(...) pioneira da temárica social no romanceiro nordestino", tal como afirmou Murilo Mello Filho na "Sessão da Saudade" com que a Academia Brasileira de Letras se despediu daquela que foi a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Casa de Machado de Assis e que, por 25 anos, figurou entre os seus membros mais ilustres e atuantes.
Na Academia, o poeta Ivan Junqueira lembrou que "(...) na criação da linguagem nordestina Rachel inaugurou um estilo na nossa literatura". O filósofo Tarcisio Padilha ressaltou nela "(...) um acendrado amor pela língua portuguesa, tal qual falada aqui no Brasil" e o filólogo Evanildo Bechara completou esse pensamento ao lembrar que ela "(...) não embarcou na iconoclastia do vernáculo... (mas ficou, ao mesmo tempo) ... livre das peias de um purismo estagnado.
Mais adiante a romancista Lygia Fagundes Telles fez poesia ao dizer que "Rachel era uma árvore... da minha cidade" para logo a seguir mergulhar no espírito jocoso de sua colega do Petit Trianon e explicar que "(...) ela amava esta Academia... mesmo quando falava mal dela".
O poeta Carlos Nejar não fez um discurso. Preferiu escrever um "Poema para Rachel" horas antes da sessão e leu a íntegra, emocionando a todos. Lá da França, onde estava, o escritor Paulo Coelho enviou uma mensagem comovente. O poeta Lêdo Ivo, no plenário, falou de improviso enfatizando o papel da romancista na "criação do romance do Nordeste" (...) "promovendo a maior revolução literária deste século, no Brasil". Ele foi perfeito.
Não sei se a Sessão da Saudade foi gravada. Nos depoimentos de todos os Acadêmicos presentes e nos textos enviados pelos ausentes, são muitas as informações que ajudam a compor o perfil da grande mulher que nos deixou aos 92 anos. Do decano Josué Montello ao mais recente Acadêmico, o romancisa Moacyr Scliar; de Arnaldo Niskier a Celso Furtado; do Alberto Venâncio Filho aos Embaixadores Afonso Arinos de Mello Franco e Sérgio Correa da Costa; do professor Cândido Mendes aos jornalistas João Ubaldo Ribeiro, Carlos Heitor Cony, João de Scantimburgo e Cícero Sandroni; dos críticos Sábato Magaldi e Alfredo Bosi à romancista Nélida Piñon e a recém chegada Ana Maria Machado, grandes brasileiros como o presidente José Sarney, Eduardo Portela e Marcos Vilaça, cada um a seu modo, montaram, com emoção, um grande painel, um retrato significativo de Rachel de Queiroz.
Tomei nota do que pude. Coloquei na pasta em que guardo registros de meu pai, o senador pernambucano e ministro Apolonio Salles que, no final dos anos quarenta, deu início a um grande batalha política, para convencer a opinião pública nacional da necessidade de se aproveitar a energia do Rio São Francisco e construir a Usina de Paulo Afonso. Foi o maior sonho dele e, anos depois, sua maior realização. No início da caminhada não foram pocuos os que combatiam a idéia. "É uma obra impossível", disse então um nordestino ilustre que depois se retratou. Rachel pulou na frente e contestou: "Só é impossível para os que não olham o futuro". Ela e meu pai ficaram amigos. Herdei esta amizade, com muito orgulho.
Rachel se foi e sua caminhada, desde o primeiro momento, manteve-se nordestina. Falou pela voz das vítimas das secas, pelo sofrimento dos baianos, sergipanos, alagoanos, paraibanos, pernambucanos, potiguares, piauienses, maranhenses e de seus conterrâneos do Ceará. Na caminhada, como disse dias atrás o Governador Lucio Alcântara "(...) ela permaneceu integralmente cearense".
A titular da Cadeira nº 5 da Academia morreu dormindo em uma rede bem regional, lá no bairro do Leblon, onde completou sua trajetória de amor ao Rio. Ela foi bem carioca nos muitos anos que viveu na Ilha do Governador e em outros bairros da Cidade Maravilhosa. Mas tinha na alma o Ceará do sertão de Quixadá, onde tocava a fazenda "Não me Deixes" até que resolveou doar os 928 hectares para que o Ibama transformasse a propriedade em um valioso patrimônio ecológico.
Rachel sabia como era duro e sofrido o ofício de escritora a que dedicou sua vida. Sempre fugia das homenagens e das bajulações, o que explicou à revista "Isto É" em um de seus últimos depoimentos: "Sou desligada das glórias e do pó dourado que cercam as reputações literárias".
Adeus, querida Rachel, agora que você se transformou na "Nossa Senhora da Academia", como bem definiu o Presidente Sarney em seu artigo de despedida.
Mauro Salles