O caixote

A primeira vez que caí da bicicleta arranhei o joelho. Doeu. Sangrou na mesma hora. Escorreu um líquido vermelho e quente joelho abaixo. Era o tal sangue. Tirei a camiseta branca e suja, limpando a perna toda. Uns dias depois a ferida se transformou em uma casquinha. Fiquei feliz, o machucado dava sinal de melhora. Os dias foram passando e a casquinha se pendurava na pele nova, rosada igual a jambo quase maduro, para ir embora. Eu tinha, naquele tempo, 8 anos. Era em 1968.
E foi assim que iniciei o meu caixote de coisas.
Tirei a casquinha do machucado cutucando com a unha. Abri um largo sorriso e tratei de guardá-la em um saquinho de plástico transparente. Selei com fita adesiva meu primeiro souvenir de infância. Depois, direto para o caixote.
O caixote, de madeira de pinus, era todo encardido de graxa. Tinha duas dobradiças e uma fechadura com cadeado. Foi usado para transportar peças de caminhão. Quando estava sendo jogado fora corri para perto dele e o agarrei com meus dois braços. Segurei firme, como quem segura seu primeiro cãozinho. Ficou um bom tempo vazio, trancado. Mas quando tirei aquela casquinha escura da perna e selei dentro do saquinho de plástico já sabia que iria inaugurar o meu caixote.
Todos os dias, eu abria o caixote. Olhava seu interior, avistava apenas o saquinho com a casquinha. De cima de meus 8 anos achava o interior do caixote uma imensidão. Um espaço enorme guardando aquele bizarro souvenir de criança. Criança guarda de tudo um pouco. Faz coleção.
Certa vez, eu caminhava da escola para casa, entre as árvores da calçada. Lembro-me bem, tinha um pé de noz pecã no curso do caminho entre um lugar e outro. Sempre achei uma árvore estranha. Sem flores. No outono e no inverno a árvore produzia castanha. Mas aquela vez a estação do ano era outra, primavera. Fim da primavera. Fazia calor. Tinha sol e uma fraca brisa correndo solta entre as árvores. Mirei o pé de noz pecã e vi, lá de cima, do alto de seus galhos, uma folha caindo, caindo, caindo. Parecia dança de valsa. Aproximei-me da enorme árvore e estendi as minúsculas mãos de 8 anos no espaço aéreo e peguei a folha, ainda verde. Debruçada na palma da mão desenhei um sorriso. Igual contorno da face que fiz pela casquinha do joelho. Já sabia, outro souvenir. Mas a folha era diferente; não queria guardá-la isolada em saquinho. Ela precisaria de outras semelhantes.
Um caderno velho resolveu o problema. Aprendi a fazer cola com farinha de trigo e colei as extremidades da pequena folha no caderno. De garrancho, ainda, tracei o nome logo abaixo, entre as linhas: folha de nóspeca. Ouvia minha mãe dizer à vizinha que aquela árvore dava boas castanhas, mas as folhas eram ótimas para um chá que curava alguma coisa que a mãe da vizinha tinha. Fechei o caderno. Abri o cadeado do caixote e falei:
- Pronto. Agora são 2.
Nos dias seguintes saí na captura de tantas folhas quanto pudesse encontrar. E encontrei muitas. Folhas de ipê. De flamboyant. Limão. Laranja. Manga. Jabuticaba. Goiaba. Santa bárbara. Mamona careca. Mamona com espinho. Depois as folhinhas pequenas, miúdas. Manjericão, sálvia, alecrim, salsinha. Folhinhas de flores. Sempre-vivas. Onze horas. Azaléias. Rosas. Margaridas. E muitas outras. Cada uma delas era colada no caderno e identificada com os garranchos de 8 anos. Com caneta, lápis preto, lápis de cor ou de cera. As folhinhas de alecrim, ainda lembro, me fizeram rasgar várias folhas de papel. Miúdas demais e a cola era espessa. O caderno foi ficando gordão de folhas de plantas.
Aos 9 anos já tinha no caixote, a velha casquinha morta. A coleção de folhas no caderno sujo de tanto mexer. Figurinhas, bolinhas de gude, estilingue, 1 peteca, homenzinhos de forte apache e índios, carrinhos de autorama, varetas de bambu para fazer pipas e alguns papéis de seda. Um carretel de linha branca. Mas o caixote ainda era imenso. Ainda tinha espaço e cabia muito mais coisa dentro dele. Então me bateu uma louca vontade de encher o caixote com tudo que encontrava e ganhava. Pedras, barbantes, lápis de cera, bola murcha, 1 gaitinha de boca, um exemplar do Pequeno Príncipe e pronto acabou enchendo.
Cheio, repleto de objetos, fiquei um dia todo olhando aquele caixote e falei aos meus botões:
- Agora não cabe mais nada dentro de você. Vou deixá-lo nesse cantinho onde você está. –
Para findar minha história com o caixote, misturei umas cores de tinta em um potinho velho de vidro e no tom ocre escrevi na tampa do caixote: meus contos.
Meus contos porque ali dentro tinha de tudo que eu podia contar para quem quisesse ouvir. A casquinha do joelho, a coleção de folhas, o projeto de construção de pipas coloridas, o estilingue, arma para proteger a invasão do meu caixote, as pedras, munições da arma, e todas aquelas outras coisas. Até mesmo a história do Pequeno Príncipe para contar. Por isso achei que deveria dar um nome e identificar meu caixote de coisas.
Passei, a partir disto, a seguir minha jornada de vida, esquecendo o caixote. Sim, claro, lembrava dele apenas quando minha mãe, de voz enérgica gritava do cantinho do caixote:
- Ô moleque. Tira já essa coisa daqui. O quê é que tem aqui dentro, heim??!!  E que negócio é esse de meus contos? O que você guarda aqui dentro? Essa coisa atrapalha e toma espaço. -
As pedras deixaram meu caixote pesado. Com reclamos ou sem reclamos, continuou em seu cantinho na casa.
Um dia, por volta do verão de 1976, ganhei um livro de contos. Contos de Aprendiz, do Drummond. Minha mãe já não se importava com o caixote naquele cantinho da casa. Como nunca obedeci às suas firmes ordens, o espaço ficou ocupado durante anos a fio pelo caixote e os meus contos dentro dele. Ao me dar o livro, explicou:
- Estava em uma livraria procurando livros sobre jardinagem, Zeca, e achei este livro de contos. Não sei porquê me lembrei daquele seu caixote que tem aquela inscrição meus contos. Então pensei comigo mesma: se o Zeca ler esse livro, Contos de Aprendiz, talvez aprenda que deva tirar seus contos de dentro daquele velho caixote. Assim você também desocupa aquele cantinho da casa onde eu sempre quis colocar uma rede de algodão, daquelas que vêm do Ceará, para deitar e descansar nas tardes de domingo. –
Minha mãe sorriu. Abraçou-me e me deu o segundo livro da minha vida. O primeiro foi o Pequeno Príncipe. O outro foi o do Drummond, os Contos de Aprendiz. Ela saiu e me deixou só, com o livro na mão.
Fiquei estático por algum tempo, no meio da sala. Tentava me lembrar onde tinha colocado a chave do cadeado. Meu Deus! Tantos anos! É, mas não consegui me lembrar onde tinha guardado a chave do cadeado. Lembrava exatamente de todos os contos dentro do caixote, mas não da chave. Ao menos tinha um cadeado para abrir, embora não tivesse a chave. O alicate resolveu o problema. Com cuidado, cerca de meia hora depois, estava sentado no chão de frente para o caixote aberto. Exalou um cheiro velho. De coisas velhas.
O resto da tarde fiquei assim. Absorto na frente do caixote. Tomado de uma grande introspecção. Refletindo. Deixei o caixote ali, no chão, com todo seu conteúdo esparramado. Fui à mesma livraria que minha mãe. Comprei outro volume do Pequeno Príncipe e papel de seda colorido. Também encontrei uma caixa grande, quase do tamanho daquele caixote, com estampa de folhas. Grandes, pequenas. Verdes em vários tons, outras amarelas parecendo secas.
Tomei uma cartolina e escrevi novamente: meus contos. Colei em um dos lados da caixa nova. O meu caixote novo. Coloquei ali dentro os 2 exemplares dos livros.
Arrumei outras varetas e carretel de linha. Aqueles antigos estavam podres. Construí uma pipa com os papéis de seda colorida, na forma de um caixote. Usei cola industrial, a de farinha não agüentaria. Em cada lado da pipa fui colando um pedaço de papel diferente, como uma colcha de retalhos. Mostrando cada pedacinho do que tinha dentro daquele antigo caixote.
O papagaio, em formato de caixote, ganhou o céu. Céu de Brigadeiro. 200 metros de linha e tirei do bolso uma tesoura. Cortei a linha e com a mesma felicidade da casquinha do joelho vi o caixote conquistar o céu e sumir longe, no alto, apenas um pontinho, ir embora com os retalhos daquele outro caixote.
Em casa, apenas o caixote novo. De estampas de folhas e os 2 livros dentro. Tirei os livros do caixote e deixei-o vazio. Os livros, depois de lidos, na estante. Dentro do caixote passei a guardar apenas os meus verdadeiros contos. Os contos que aprendi a escrever.

Carlos Alberto Francovig Filho

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