Eu estava sentada à minha mesa trabalhando. Levantei a cabeça e ao olhar para fora, dei com um familiar vulto, que eu conhecia, através de fotografias e mais ainda por reminiscências da minha infância. Parei. Meu coração batia aceleradamente, e eu não podia tirar os olhos daquela mulher que entrava no meu curso, acompanhada de uma outra senhora.
Desinibida por natureza e temperamento, expansiva ao extremo, fiquei simplesmente parada, sem conseguir dizer uma palavra. A emoção, sem dúvida, dominava-me. E eu fazia uma força imensa para ultrapassar esse bloqueio.
Mas como não ficar assim, se na minha direção vinha Rachel de Queiroz a notável escritora cearense? Como não ficar assim, se ela, naquele momento, só poderia estar entrando ali, em resposta à minha carta?
A vida é feita de poucos momentos intensamente alegres e marcantes. Estes compensam a tristeza e a monotonia do dia-a-dia. Estava ali, um daqueles instantes, em toda a sua proporção.
Lia, sempre acompanhada da amiga, aproximou-se de mim. É uma mulher de um incrível carisma. Jamais, se não soubéssemos a sua idade, lhe daríamos a sua idade. Além disso, esse carisma é evidente. Apenas a sua presença basta para isso, porque vem de dentro dela, uma força tão grande que somos obrigados a olhá-la, admirando-a.
A pergunta chegou simples e direta:
Jovem, você é a Vânia?
Consegui dominar-me para responder em seguida.
Sim, sou eu.
Eu já sabia. Você possui os traços fortes de seu avô. Sabe quem eu sou?
Como poderia não saber? Como poderia deixar de saber que você é a Rachel de Queiroz
Ela sorriu. Um sincero e manso sorriso, que vinha de dentro e que iluminou o seu simpático rosto redondo.
Há pessoas para quem o sorriso é apenas uma máscara ou um rictus. Mas para essa mulher ele continha vibração, alegria e forte transmissão de carinho.
O sorriso deveria realmente contagiar porque enobrece o ser humano tornando-nos fundamentalmente diversos da irracionalidade e elevando-nos a uma condição de sensibilidade e compreensão.
Eu ainda estava sob efeito da emoção. Considero-me emotiva mas também senhora de mim e é nessas horas que compreendemos o quanto somos vulneráveis.
Rachel circunvagueou o olhar pela minha sala e falou:
Bonita, a sua sala. É uma linda escola? De línguas?
Sim, é uma escola de língua portuguesa e estrangeira.
É sua?
É. Resolvei montá-la de repente, mas com muita vontade.
Ela fitou-me com simpatia e a seguir disse lentamente, com o olhar perdido em algo além.
Sim, você é a neta do Monte Arraes. Ele possuía essa raça e determinação.
Não concordei. Nunca tive a pretensão de ter a fibra de meu avô, mas mesmo assim agradecia-lhe ter me comparado a esse grande homem.
Que estranho caminho percorre a nossa psiquê!
Olhando para a grande escritora, conversando com ela, parecia-me, de repente, que eu já a conhecia há longo tempo. E no entanto, pessoas há, que a gente conhece anos e anos, dando a impressão de tê-las visto apenas ontem.
A nossa conversa foi curta mas intensa.
Ela ia viajar em seguida e me perguntou se tinha alguma coisa escrita para lhe mostrar. E então ela me disse algo que conseguiu de novo me emocionar:
Seu avô sempre me dizia que tinha uma neta do qual se orgulhava e que era escritora. Já pensou em escrever um livro sobre seu avô?
Sim, tenho pensado muito. Prometi a ele que o faria.
Escreva, então. Arranje tempo. Transforme durante algumas horas, a sua mesa de empresária em mesa de escritora. Nem que para isso, você tenha que trabalhar muito mais. Chegue mais cedo e saia mais tarde. Escreva um livro sobre seu avô e eu promoverei esse livro. Mas antes gostaria que fizesse uma palestra sobre ele. Entraremos em contato.
Não consegui responder. Nunca, em tão pouco espaço de tempo, fiquei durante tantas vezes engasgada pela emoção.
Compreendi, então, que em absoluto eu não era uma pessoa objetiva. Sempre me achei extremamente sensível, mas também tinha consciência do meu domínio psicológico e de repente concluía que era frágil e indefesa. Seria mesmo? Ou teria sido apenas uma nova e forte experiência a mexer com minha estrutura psíquica?
Filha de psiquiatra, acostumada a lidar dentro da casa de meus pais, com esses médicos que pesquisam e exageram a reação das pessoas até nos traços da fisionomia, eu tentava me analisar em vão, em uma questão de segundos.
Rachel notou o que se passava comigo e passando a mão pelos meus cabelos, como se eu fosse apenas uma criança, disse tranqüilamente:
Vânia, nem todos os dias, o escritor tem vontade de escrever, como também qualquer profissional, não é uniforme na sua vontade de produzir. Mas nesses dias, pesquise sobre seu livro, colete dados, mas não deixe, de uma forma ou de outra, de trabalhar nele diariamente. Não daria um conselho para você se tornar uma escritora se já não o fosse por estrutura e hereditariedade. É dura a vida de escritor. Mas lute Vânia e eu a promoverei. Eu lhe prometo.
Fazendo uma pausa ela novamente tocou em meus cabelos com grande suavidade e singelamente, como se fosse alguém apenas anônima e comum disse-me:
Adorei a sua carta. Ela me arrancou lágrimas. Lembrei-me muito de seu avô e olhando-a, vejo que você, se parece imensamente com a meiguice de suas palavras.
Fui sincera quando respondi:
Pensei que não fosse ter tempo para me responder e muito menos me procurar.
Rachel olhou-me e nesse olhar vinha muita ternura quando falou.
Você é uma escritora, deixaria de responder uma carta como a sua? Você, minha querida, pede apenas para ver-me, nada mais. Não é incrível? Não é uma homenagem que nos traz lágrimas?
Há momentos que valem por si só. Que se impõem. Que não precisam de palavras. Que valerão enquanto a gente viver. Que compensam outras tristezas. Que servirá de estímulo pela vida afora. Que trará sempre reminiscências boas. E esse era um desses momentos da minha vida.
Acostumada a ouvir falar dessa mulher, quando eu era apenas uma criança, admirando seu valor e inteligência, primeiro através de comentários na casa de meu avô e em seguida por minha própria pesquisa, era muito importante o estímulo espontâneo que me vinha através dela.
Rachel pareceu-me uma mulher extremamente suave e amiga, e hoje, quando parece que a doçura saiu de moda, conviver com essa suavidade era-me valioso.
A escritora ainda conversou alguns minutos comigo. Estimulando-me com energia e sinceridade, consegui entender que ela tinha o firme propósito de ajudar-me.
Despediu-se de mim, dando-me seu telefone no Rio e pedindo que eu desse notícias. Segurando meu rosto com ambas as mãos e fitando-me intensamente beijou-me com intenso carinho e acompanhada da amiga, testemunha silenciosa da nossa conversa, e que também se despedira, encaminhou-se para a porta, abriu-a e por um momento hesitou. Depois votando-se lentamente, perguntou:
Vânia, você tem alguma religião?
Olhei-a, estranhando a pergunta inusitada, mas respondi:
Eu acredito em Deus.
Doce e envolvente sorriso, iluminou seu rosto expressivo e amigo ao me falar sinceramente:
Sinto muito. Eu não acredito, mas seremos amigas mesmo assim.
E saiu, deixando-me perplexa, feliz, encantada e com lágrimas que eu não sabia explicar como, saiam de meus olhos, sem que eu conseguisse impedir.
Nesse momento pude avaliar que chorar mansamente é tão importante quanto sorrir porque ambos nos fazem humanos, ricos de sentimentos e verdadeiramente forte na nossa fragilidade. E fortes porque temos a coragem de expressar sem constrangimento nem fraqueza as nossas emoções.