Duas horas da tarde de um ensolarado mês de agosto ainda na década
de 80.
Eu, dirigindo uma velha Brasília na estrada Belém Brasília
indo para Brasília. Como não tenho saco para dirigir horas
seguidas e a fome era grande, resolvo parar antes de Araguaína que
era a cidade onde eu planejava almoçar. Decidi que pararia na primeira
cidadezinha que achasse simpática para procurar uma churrascaria
que também fosse simpática e comer churrasco, que parece
ser a única coisa que se come no interior do estado de Goiás.
Nós, nortistas, mais litorâneos e cercados de rios temos uma
dieta basicamente de peixe e estranhamos como um povo pode comer tanta
carne, como os goianos.
Imerso nesses pensamentos, a cidadezinha resolve aparecer no visor
de meu para brisa, após uma placa indicativa de que “Flor do Araguaia”
estava a cinco quilômetros e “sejam benvindos”. Na realidade a cidade
era um pouco afastada da rodovia e disposta sobre a encosta de uma suave
elevação das bordas do planalto central. Entrei na rua principal,
fugindo dos restaurantes de beira de estrada, onde, normalmente, se serve
mal e caro. Procurei a praça da matriz. Nessas cidades parece ser
padrão, na praça da matriz, haver, além da igreja
matriz, Banco do Brasil, Correios, telefônica, o único cinema,
fila da Previdência e bares e restaurantes. Não deu outra.
Encontrei o meu, com o singelo nome de “Bar e restaurante flor do Araguaia”,
mesmo nome da cidade. No Bar e Restaurante Flor do Araguaia só havia
churrasco. Churrasco das duas horas da tarde, diga-se de passagem. Aquela
carne desidratada e cansada de tanto calor e lanhada de facão amolado,
esperando os famintos retardatários. Escolhi uma mesa próxima
à entrada e logo se aproximou o garçom, barba por fazer,
calça preta, camisa branca, gravata borboleta, tudo bem sebento
como deve ser um garçom de beira de estrada.
— O senhor deseja um “rodízo”?
— Por favor, um rodízio e também uma cerveja.
Percebi, nesse instante, que havia um grupo de jovens estudantes, fardados,
na praça em frente. Pareciam estar me olhando. Um deles empunhava
uma máquina filmadora VHS, louco para filmar alguma coisa. Boa coisa
não deve ser, pensei com meus botões. Quem sabe estão
me confundindo com o Reginaldo Rossi.
Fingi que os ignorava e quando dei prazerosamente a primeira golada
de cerveja, uma garota do grupo aproximou-se e veio com esta:
— Boa Tarde! Somos do Colégio Estadual Dom Pedro II e estamos
fazendo um trabalho escolar sobre alcoolismo. O senhor poderia nos ajudar?
— De que forma?
— Queríamos lhe filmar bebendo a bebida e fazer algumas perguntas.
O filme só será exibido na sala de aula e depois desgravaremos
a fita. Dá para o senhor colaborar?
Era o fim da picada no meio da Belém Brasília. Devia
haver uns quarenta mil habitantes naquela cidade. Que dez mil bebessem
bebidas alcoólicas. Desses dez mil, pelo menos mil bebessem com
freqüência. Coisa normal. Desses mil, uns quinhentos bebessem
com muita freqüência, e desses quinhentos, cinqüenta fossem
aquilo que a medicina considera alcoólatra, desses que perambulam
pelos botecos dos subúrbios. Pois bem, a estudantada não
achou nenhum desses nativos e veio exatamente em cima de mim, forasteiro,
distante mil quilômetros de Belém do Pará onde, possivelmente,
não me incluiriam nas estatísticas dos alcoólatras.
Reagi:
— A questão é que acho que a estrela do filme que vocês
pretendem fazer, não é um alcoólatra. Não seria
melhor vocês procurarem um desses beberrões dos bares suburbanos?
— Não achamos que o senhor seja um alcoólatra. Apenas
a essa hora, e numa terça-feira, estamos em dificuldade de encontrar
alguém bebendo.
Eles tinham razão. Beber às duas horas da tarde de uma
terça-feira é coisa de alcoólatra e de nada adiantaria
eu explicar que minha situação era atípica porque
estava apenas matando a sede, após horas e horas de estrada. Se
fizesse isso possivelmente daria margem para fazerem algum comentário
sobre os perigos de dirigir alcoolizado. Pensei em me livrar logo do grupo:
Está bem. Podem fazer a filmagem. Mas não demorem muito
porque pedi um churrasco e sou muito guloso. A não ser que pretendam
fazer algum filme sobre o pecado da gula.
A mocinha fez um sinal e o restante do grupo se aproximou. Na frente,
o “Spielberg” deles portando a filmadora e me pegando de todos os
ângulos. Parecia ter experiência em filmagens, pois não
satisfeito com os ângulos, começou a me dirigir:
— Dá pro senhor tirara a garrafa de cerveja do isopor. Gostaríamos
de filmar o rótulo da cerveja.
Obedeci como um ator bem remunerado. Um verdadeiro Tom Hanks do álcool.
Em seguida sacou um cigarro do bolso e falou:
—Agora dá para o senhor fazer pose com um cigarro?
— Mas eu não sou fumante...
— Também não é alcoólatra. É só
para enriquecer a filmagem com outro vício típico dos alcoólatras.
Empunhei o cigarro, meio desajeitado.
— Agora encha o copo, gostaríamos dessa “tomada”.
Enchi o copo sentindo-me o maior babaca do mundo, mas lisonjeado por
estar participando pela primeira vez na vida, de uma “tomada”.
— Agora leve à boca, por favor – Disse o Spielberg – Pessoal!
Fiquem atrás dele. É importante uma tomada da turma junto
com o Alcoólatra.
A essa altura, mendigos, velhinhos aposentados, transeuntes e desocupados,
aglomeraram-se na calçada para ver aquele primor de trabalho
cinematográfico em que eu era a vítima, digo, ator.
Comecei a suar frio e lembrar de um velho filme que eu assistira na
minha infância: “o ébrio”, com Vicente Celestino. Se estivesse
com o violão, cantaria a música do filme.
Parou então, um carro da zelosa polícia goiana, ao perceber
a aglomeração. Olhei para a menina que me cooptou e falei
secamente: vai lá com eles e explique.
Foi quando o garçom apareceu com o espeto, para dar início
ao seu “rodízo” comigo. Fui literalmente salvo pelo espeto. O Spielberg,
já satisfeito com as cenas que gravou, deu por encerrada as “tomadas”.
— “Cooorta” ! Tá jóia pessoal. Muito obrigado ao senhor.
Bom almoço!
Foram embora e já iam tarde. Entretanto ainda ouvi uma sugestão
graciosa do menorzinho do grupo:
— “Bem que a gente fazia uma coleta e pagava uma cerveja para ele”.