Vida Depois da Vida?
“People who survive close calls and relate profound near-death experiences agree that love is what life is all about. In panoramic memory visions, they revisit every detail of their lives in full color, holographic reality.”
(Raymond Moody, PhD; M.D.)              
Não posso dizer que concordo ou discordo – antes pelo contrário -, apesar de ter vivido uma experiência similar. Acabo de baixar uma pasta da memória RAM (Retratos Acumulados na Memória) deste meu incrível computador cerebral e, para minha surpresa, deparo com arquivos que há muito tempo julgava deletados. Um deles me mostra nitidamente a primeira vez em que encarei a morte de perto, se é que não morri mesmo e tenha ressuscitado, ou se esta vida atual já não seria outra; ainda estou em dúvida. Devia ter de oito para nove anos e tinha ido passar um final de semana na fazenda (quinta, para a Maria Petronilho, para a Dina, para os Daniel e para os outros lusitanos cujos nomes não me ocorrem agora) de um homem muito rico, para os padrões da minha aldeia, e que era muito amigo do meu pai.

O episódio está tão presente na minha lembrança como se tivesse sido o último ato que pratiquei antes de iniciar esta escrevinhação, embora tenha se passado há cerca de quarenta e quatro anos. Estávamos minha mãe, eu, os donos da casa e alguns outros convidados; meu pai havia saído. Tentei eliminar, pelo menos provisoriamente, a fotografia que reproduz a imagem física da fazenda / quinta, deixando apenas o texto, mas não foi possível; portanto devo mostrá-la ainda que de relance. Chamava-se “Passagem” – e lá vem uma associação livre: a “Passárgada” do tio da Mhelzinha. A “Passagem” distava cerca de três ou quatro quilômetros da minha casa e o acesso a ela poderia se dar por terra, ar e mar (de lama), pois quando chovia aquele solo de aluvião se transformava num autêntico e vastíssimo fosso de castelo medieval.

Nunca soube muito bem onde ficava a entrada ou a saída da casa principal, pois entrávamos e saíamos dela por qualquer uma das dezenas de portas, eternamente abertas para acolher, não apenas a nossa família, mas também a dos outros amigos do dono que, por sinal, eram praticamente todos os habitantes da minha aldeia. Apesar de ignorar aqueles dois detalhes, lembro muito bem que a fachada em nada diferia das construções coloniais das casas de fazenda nordestinas. A sala de visitas continha um piso de mosaicos e dava acesso aos outros compatimentos: quartos de dormir e dois longos alpendres laterais que serviam de oitões e eram sustentados por renques de pilastras de alvenaria, onde se inseriam armadores contrapostos a outros correspondentes na parede, de modo que, a cada pilastra correspondia um espaço destinado a se armar uma rede. Estas nunca faltavam; eram redes branquíssimas, limpas, largas, contendo extensas varandas confeccionadas pelos mais requintados artesãos. Permaneciam assim estendidas durante o dia e a noite e nelas dormiam os hóspedes da casa embalados pela brisa suave que soprava da represa de um açude. A palavra segurança sequer era cogitada, pois simplesmente já fazia parte intrínseca da minha aldeia como hoje, por exemplo, fazem as muralhas, os guardas e as guaritas, dos prédios de apartamentos.

Pois pasmem! Foi precisamente uma destas redes que quase poupou os leitores da leitura desta escrevinhação. Coitadinha da rede! Ainda que fosse uma rede de pescar, nada teria tido a ver com o peixe. Sucedeu que na noite anterior eu tinha ido a um circo e assisti a muitas exibições de trapezistas, malabaristas, saltadores, equilibristas e outros istas de circo, e resolvi tentar fazer o mesmo lá na “Passagem”, saltando sobre as redes. Durante os primeiros pulos até que não me saí muito mal, mas como a minha habilidade era praticamente nula e nem as redes estavam ali com aquela finalidade, uma delas resolveu revidar, pensei mais tarde. Durante um dos saltos pisei o fundo de uma delas, caí pra trás e permaneci alguns minutos sem me mexer e sem respirar. Isto é, dizem que fiquei assim, porque me lembro muito bem que via, de uma certa distância, o meu corpo estatelado no chão, mas não podia me comunicar com as pessoas que se debruçavam sobre ele.

Atenção! Declaro, para os devidos fins que só vi isto mesmo. Nada de túneis escuros ou iluminados. Nem muito menos pude perceber se o amor serviria ou não para alguma coisa nesta vida. Aliás, para falar a verdade, eu nem sabia o que era amor. E até hoje ainda não sei se sei!

Raymundo Silveira

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