Desenquadramento Social

Enquadro muitas imagens no meu cotidiano que engloba trens e ônibus intermunicipais, utilizando-me de uma câmera imaginaria, através da qual vejo as pessoas por um ângulo de 90º. Assim passam pelo meu campo visual, muitas musas desdentadas e descabeladas que deliram em Carapicuíba, deitando-se no chão sujo em busca de sanidade, porque a sanitização há muito deixou de acontecer.
Vejo rostos macilentos e transtornados, diferentemente do fulgor globalizado e exibido nas telas de reality shows e do brilho exibido pelas estrelas que se ensaboam em banheiras cor de pérolas. Observo também que ninguém se apressa em filmá-los.
São seres amortecidos e neutralizados pela dor e pela indiferença ou seriam seres que curam suas chagas diariamente movidos por uma compulsão pela vida ou um processo divino?
Pedintes e ambulantes que entoam seu marketing pessoal, cada qual em sua própria campanha, ressaltando os desalentos e as penúrias.
Enquadro-os nas cores possíveis, nas próprias tonalidades e eles seguem em câmera lenta, sem fazer parte de nenhuma estatística. As imagens surgem em zoom e desaparecem lentamente do campo visual, restando apenas a compaixão muda e dolorida, com alguns filtros e lentes modificadoras.
Enquadro-os em uma luz lilás, sem saber se algum deles já assinou um contrato global ou se pretende sair em revistas de nus famosos. Obviamente, nu artístico, em que nenhuma nudez é castigada e nem julgada, apenas deglutida como sorvete de massa no verão do Senegal!
Caminhamos todos assim sob o efeito de algum anestésico, absorvendo a fuligem em conta gotas, a penúria alheia como espinhos, abrandando o espanto com a indiferença e acalentando-os em nossos sonhos, quando o escudo do consciente amansa e trota em vez de cavalgar em disparada.
Provavelmente esses, são os seres que comem luz e que aguardam uma televisão mais humanitária, que em vez de levar aos lares conflitos, na forma de deboche pitoresco e consumismo exacerbado, possa exibir receitas saudáveis e terapêuticas, em que até mesmo as cascas de bananas e as folhas de beterraba podem ser consumidas. Talvez esses seres esperem por menos exposição de sexo explícito e banalizado, escancarado nas séries televisivas, nos jornais e nas revistas. Provavelmente, anseiam por escolas em que os contos brasileiros reais e a história seja aprendida por meio de paisagens reais, a permitir-lhes o próprio resgate, pelo conteúdo semelhante de suas vidas.
Um Brasil menos devastado, menos desdentado, menos decadente, é o que esses seres pedem ao estender a mão e a alma à caridade alheia.
Até quando permanecerão assim desatendidos, sob nosso olhar anguloso e até quando os meios de comunicação insistirão em exibir cada vez mais as chagas em vez dos remédios e alentos possíveis, que com certeza existem e apenas estão ocultos nas prateleiras de alguns humanitários esperançosos?
Enquadro novamente minha lente nesses seres, nos fatos e cotidianos, tentando extrair um poema de cada olhar e me perguntando se temos procurado atuar em vez de anestesiar?
Extraio linhas perpendiculares de meus esquadros imaginários e concluo também que na ordem divina das coisas existe o respeito pelo livre arbítrio, o que provavelmente confere  a cada um a sua própria sina, seu próprio karma.
E mergulhada nessa lente e nesse foco, busco soluções e atitudes minhas e alheias que amenizem essas angústias, por vezes silenciosas e enquanto isso, sigo escrevendo meus poemas nos muros e murais ao viver e integrar-me à vida, de corpo e alma e a compaixão que me for possível, uma vez que sou apenas humana.

Leila Barros

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