Engolindo sapos

Não tenho barriga, tenho ranário. Alguns acham que é uma forma original de tratar meu volumoso abdômen. Até se lembram de outros apelidos. “O meu é calo do amor”, diz um. “Eu já nasci com air bag”, zomba o outro. “O dele é árvore de cemitério”, apoquentam o desavisado que está ao lado. Tratam na brincadeira, mas não é.

Tenho um ranário porque engolir sapos é uma arte e meu barrigão é a prova inequívoca de que, enfim, tornei-me um artista. Não sou chinês, mas estou aprendendo a controlar os sentimentos. Finjo considerar absolutamente normais as situações em que viro um zero à esquerda ou um nada absoluto.

Isso não significa que tenha desenvolvido especial capacidade para aturar desaforos. Outro dia, ao atravessar uma avenida com as crianças, perdi a razão por alguns segundos diante de um motorista apressadinho que forçou a passagem do veículo em nossa direção. Gritei um nada gentil “pera aí, seu babaca!”, de efeito duvidoso, mas de excelente apelo teatral.

Fora esses acidentes de percurso, tenho controlado as reações. O ardor das cicatrizes já conquistadas arrefece os ânimos e acaba agindo como uma espécie de calmante pela experiência. Há casos, confesso, que são de pura desistência. Finjo que não me incomodo, viro a página e parto para outra cena do drama. É mais fácil, dói menos e reduz o desgaste. Eventualmente, até sinto mágoa. Mas o exercício da sublimação consome os combustíveis explosivos.

Não pense que virei um gordo catatônico. Ainda reajo com indignação quando me chamam de Geléia Assassina, Rolha de Poço ou Chupeta de Baleia. Tirando isso, sou perfeitamente domesticado. Dócil até demais. Ainda acabo virando diabético com tanta doçura envenenando meu sangue. Nem preciso discutir a questão com o pâncreas. Meus sapos já estão tratando de comê-lo.

O problema é que ainda não sei como administrar meus velhos monstros ancestrais, que continuam por aqui, hibernando. Há tempos não se apresentam. Quando acordam, não há calmante que resolva. É a única coisa que temo. Posso enganar meus humores, mas não engano os maus humores deles. Inesperadamente ressurgem, assumindo o comando.
Meus monstros não são violentos como naqueles filmes de terror em que se mata quilos de gente a facadas. São sutis e ardilosos, pilotando minhas palavras para rasgar sentimentos e idéias, como se estivessem fazendo sushi.

Ou faço alguma coisa para superar esse amortecimento generalizado, ou serei, logo, logo, submetido aos humores monstruosos de outros tempos, quando dizer “claro, isso é natural!” era conversa para fazer Tiranossauro Rex dormir!

Ui, que medo!

Maurício Cintrão

Do livro: "O gordinho e a menina de rosa - textos curtos para viajar", Protexto, 2004, PR

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