Reminiscências no 31 de março

O professor Luís Lyrio acaba de editar seu interessante livro “ Nos Anos de 68”.Os que foram jovens nos “Anos de Chumbo”, aí estão, como testemunhas do Tempo, infelizmente um tempo dolorido de relembrar.A Ditadura Militar no Brasil completa 40 anos de estouro hoje... Estouro de boiada de não se poder esquecer. Quem viveu, estremece só de pensar. O livro tem selo da primorosa “Anomelivros”, do poeta e ator Wilmar Silva. Estou escrevendo de Belo Horizonte, Minas Gerais, para os internautas. A leitura escorrega pela goela da mente, como água ou aguardente. Fluência verbal escrita, de primeira linha.Há os que falam bem e são gosma de quiabo ou lascas de pedra na hora de escrever. Há escritores silenciosos: não conseguem falar em público, mas suas palavras nos preenchem ou encantam.Conheci o autor e parece que ele faz bem ambas as coisas, mas não sei se gosta de oratória. Vou perguntar.

Eu própria comecei umas memórias intituladas “A poesia e a literatura sob Mordaça ”, com a qual quis concorrer a uma bolsa na Rede Vitae, para poder viajar e entrevistar escribas daquela época, mas, distraída que sou, esperei o último dia do mês (aquela história de “vale o carimbo do Correio”), pois também concorreria com contos e poesias em certames costumeiros (gosto de concorrer, pela coceira da espera, pelo “ frisson ” de abrir um envelopes e saber-se classificado. Quando não, ainda lucramos lições de vida. De qualquer forma é preciso que num júri, umas poucas pessoas sejam empáticas a certo texto, no meio de centenas de concorrentes. Perdi o prazo: a data era antes do fim do mês. O que mandei voltou exatamentecomo enviei, apenas dentro de outro envelope. No cito livro, conto vivências dos escritores de Juiz de Fora pertencentes ao NUME-Núcleo Mineiro de escritores-e de outros escribas que ali aportavam. Também coisas que vivi na redação da Gazeta Comercial, órgão oficial da cidade, onde eu fazia “de um tudo”, novinha, noivinha (acabei casando com o Mmessias da Rocha, colega de redação, redator chefe de “A Tarde ” e depois dono do tablóide URGENTE, onde fui editora de Literatura e Arte).

Veio uma Lei para darem as carteiras de jornalistas a quem de fato praticava o nobre ofício.À socapa, soubemos que seríamos prejudicados, por ele ter sido preso político. Atualmente, ele foi idenizado pelos agravos e está requerendo sua carteira. Dessa união, nasceu-nos um filho, mas apesar de nos darmos bem, o casamento durou pouco.Os jornais da época. Em nosso casamento, onde havia escritores de muitos Estados e poetas, trovadores, ”saindo pelo ladrão”, comentava-se que formaríamos um par perfeito. Os dois fazíamos poesias, trabalhávamos em jornal (pela Gazeta do Sr, Théo Sobrinho e do Paulo Lenz, passou Carlos Drummond, subida honra)...

Ainda o vejo o Antonio Messias a procurar-me, com um feixe de belas poesias e seus olhos grandes azuis-violeta, esperando achar um jornalista tarimbado, quiçá uma senhora vetusta ou mesmo um exemplar masculino (não sei porque cargas dágua, meu feminino-mas raro-nome fazia muita gente pensar que eu era homem !), para avaliar seus escritos e encontrando uma jovenzinha magricela, cabelos enormes e olhos maiores que o resto...

De vez em quando, umas situ/ ações esdrúxulas por conta da censura :fui entrevistar Fernando Sabino, Rubem Braga e Vinicius de Moraes, mas o Seu Théo sofrera certas pressões e não queria ceder o fotógrafo. Teimosa, liguei de novo para a redação e por sorte minha, ele era um pouco surdo. Quando eu disse:

— Seu Théo, mande o repórter, o Vinicius chegou!

Ele respondeu já condicionado pelo sistema :

— Quem? O ministro ?

Não perdi tempo :

— É, o” ministro ” chegou...

E ele mandou .Na verdade, eu era a queridinha do jornal: nada me negavam. Mas no outro dia, para explicar-me, eu o olhava bem nos olhos e reafirmava:

— Mas Seu Théo, foi o senhor mesmo quem mandou o fotógrafo... Eu lhe disse que era para entrevistar o Vinicius...

No final, o Seu Paulo, que era irmão do Seu Théo, adorava minhas clevanices. Eu tinha uma coluna diária, que se chamava “Clevane Comenta” e aos domingos, uma página à qual chamei, pomposamente, Ribalta Lítero – Artística, depois simplifiquei para “ Carrossel ” e quando namorava o Messias, fazíamos a página juntos, então passou a ser “Gente, Letras e Artes”, rediagramada por ele (naquele tempo, embora as rotativas já estivessem nos jornais de Chateaubriand, a velha e querida Gazeta ainda tinha, no trabalho de seus linotipistas, a grande responsabilidade do jornal estar nas bancas). Eu não gostava de datilografar porque as minhas mãos são mais lentas que meus pensamentos... Então, eu revisava a matéria de um ótimo repórter de rua, o José Luís e ele, em troca, batia à máquina meus textos.O Antonio Messias também datilografava minhas matérias, algo interessante de se ver: cigarro permanentemente no canto da boca a vigiar-me pelo canto dos olhos (era ciumentíssimo), cinza crescendo e dedos batucando... Até hoje faz músicas de carnaval para escolas de samba em Juiz de Fora, neste último, duas marchinhas :Martinho de Todas as Vilas e uma homenagem à Mangueira...

Quando eu estava grávida de meu filho, desenhista e bass-man, se passava uma farda perto, eu me assustava com os sustos dele: estremecia, mudava. Até hoje escuta pouco. Muitos “ telefones ”recebidos quando foi preso (mãos espalmadas são brutalmente impactuadas contra as orelhas.E os ouvidos retinem, doem). Interessante é que ambos éramos filhos de militar. Meu pai, no entanto, apesar de ter curso até major,pediu para ir para a Reserva, tão logo foi promovido a oficial. Não tendo espírito militar nesse sentido, não compactuou com o que acontecia (mamãe reclamava ”Você estudou, serviu na guerra, morou em fronteiras, vai ter soldo de tenente?”). E ele calado. Havia a questão ética, do telegrafista que era. Só se manifestou uma vez, quando cheguei com uns livros que o representante da “Coordenada Editora de Brasília” (que trazia livros de várias outras) me entregou sem uma palavra. Um deles era “O Menino de Belém”, repleto de fotos. Contava a morte do estudante Edson, no episódio do Calabouço. Onde andará esse livro? Esqueci o autor...

— “Queime esses livros, minha filha !

Espantei-me, pois ele me ensinara a venerar os livros e brincava comigo: ”Você quer ir ao cinema, comprar um esmalte ou ganhar um livro?” Em pequena, dava à minha mana Cleone bonecas, patins. para mim, livros... Coitado: devia saber o que a juventude estava passando nos porões, mas, boca-fechada,renunciou à carreira... Jamais impediu que eu levasse quem quer que fosse à minha casa. Muitos escritores e artistas “subversivos” comiam à nossa mesa, chamando-o de “Cabeleira ” ou “Cariri”, pois era careca e nordestino, por brincadeira. Imagino que quando viu os livros também “subversivos”, imaginou terríveis cenas de busca e apreensão, dos impressos e escritos à filha mais velha... Uma vez prenderam o Roberto Guedes, que era noivo da Marta Sirimarco.. Atriz do premiado Grupo Divulgação, ela escrevia a coluna de Teatro. Ele, astrônomo, a de Astronomia... Ela corria pelos amigos, pois queria arrecadar dinheiro para de alguma forma, promover a fuga do rapaz.. Um dia eu estava lecionando, quando ela foi procurar-me, na Rua Duarte de Abreu. Deixou-me uma caneta linda, toda recoberta com linha de seda, onde aparecia meu nome, feita pelo Guedes, na prisão. Não voltou. Na parede da sala, deu de cara com um grande retrato de meu pai,de farda, colorido à mão pelo fotógrafo Albert Bauer, pai de minha amiga Renate. Este, fora aviador na II Grande Guerra Mundial. Inocentado pelos tribunais de guerra por ser apenas um um militar... Foi prisioneiro em campo de concentração inglês e duas vezes, dado como morto. Apareceu após as missas rezadas por sua alma. Dona Margarida,”Gretchen”, de luto, deu à luz dentro dágua, sob bombardeio, sob a casa onde moravam.Ficou impedida de ter mais filhos. Lá em casa a liberdade de ser que nossos pais nos concedia, permitia que a amizade, em qualquer segmento, fosse isenta de quaisquer preconceitos, raça, credo, cor, nada disso era importante. Eu tinha uma irmã negra, de criação, convivemos com caboclos e índios na Amazônia, minha melhor amiga era alemã, meu namoradinho de infância, era nissei, alguns freqüentadores da casa eram loucos de pedra e nos alegrávamos com sua inocência... Por fim, meu adorado mano caçula nasceu com Síndrome de Down, ampliando consideravelmente nosso limiar de tolerância e amor pela humanidade... Não é à toa que me tornei psicóloga :de gente, eu entendo... Ah, mais que alívio, quando, muitos anos depois, abri um grande jornal nacional e encontrei o Guedes, falando como sempre, de astros e estrelas! Escapara,voltara, que alegria...

Certa feita, o “DA (Diretório Acadêmico) de Engenharia ”, no seu tradicional “Semanão”, convidou Carlos Heitor Cony e Arthur Poerner para palestra e lançamento de livro. Do bigodudo e interessante Cony, creio que era o “Tijolo de Segurança ” ou um outro romance. Do ruivo e simpático Poerner, não me lembro. Chegamos, um amigo jornalista e eu e fomos recebidos a metralhadora. Não autorizaram o evento. Militares “guardavam” a entrada de onde haveria a fala dos escritores... Karl então disse-me que saíssemos de fininho e fôssemos ao hotel onde estavam. E assim, os entrevistamos.

Adorávamos mostrar nossas carteiras:”Imprensa”, dizíamos. Isso parecia confundir por instantes os soldados, tão jovens quanto nós, por um dilema deviam pensar: “eles dirão algo se os reprimirmos, ou não dirão se os recriminarmos, punirmos”, etc. E aí ganhávamos uns segundos para bater em retirada, à procura do que nos negavam ou simplesmente, escapar... Os militares escolados, claro, pelo contrário, detestavam jornalistas que não eram de direita, como atesta o caso do Wladimir Herzog...

Quando Juscelino voltou do exílio, foi dar, como despiste, uma palestra na faculdade de medicina ou na associação médica. Pois o DOPS tomou a querida máquina do Sr.Bauer, que lhe garantia a sobrevivência. Dei tantos telefonemas, que, posteriormente, a devolveram. Como repórter, eu não podia entrar.Mandei um bilhete para o Juscelino. Disse que a filha e a neta de Luiz Máximo estavam ali para abraçá-lo. Meu avô, paraibano, jornalista, era amigo de JK. Ele negociou nossa entrada e assim, como uma ouvinte comum, pude entrar. E nem tive de trocar a roupa. Já Seu Alberto Bauer, ficou lá fora, desesperado, esperando pela sua máquina de fotografia...

A Editora Civilização Brasileira editava, corajosamente, em seus cadernos, as lutas, os movimentos dos artistas de teatro, no Rio, publicando o então impublicável: fotos.Maravilhada com isso, eu me fazia de tonta (ou era mesmo assim inconseqüente?) e tirava da clandestinidade literária um monte de escribas que tinham de parecer calados.Ia direto às oficinas e o Zequinha, com outros linotipistas, diagramavam todas as minhas matérias. Nada tinham de mal :é que tudo era proibido mesmo. No outro dia, O Guilhon Loures, jornalistas meu chefe de redação, exultava abertamente. Ele era engraçadíssimo. Uma vez,viu subir pela escadaria da” Gazeta ”, uma procissão da TFP (Tradição, Família e Propriedade). Ele os botou para correr, escada abaixo, a carregar suas bandeiras.Morríamos de rir da extrema Direita.

No meu casamento, conheci meu cunhado, o fotógrafo Wilimar Rocha, que permanecera preso por dois anos, sofrendo torturas. Magérrimo, tinha o terno comprado para a cerimônia dançando em volta das pernas. A namorada o esperou e chegaram a noivar, mas quem andou pelos porões tem dificuldades de adaptação. Meu marido jamais se perdoara porque ele fora libertado (escreveu uma poesia e um Major comoveu-se), enquanto o irmão mais novo não teve essa sorte... Salvo pela poesia! Narro essa história em conto, “O Militar e o Poeta”, que deveria ter saído na antologia da REBRA, mas ficou grande demais. É difícil amordaçar as lembranças e o dinheiro anda curto para.

Padres contaram-me que colegas refugiados na França estavam de tal forma condicionados, que chamavam pelo torturador. Quando fiz Psicologia, tive longas aulas sobre as relações entre torturador e torturado. É uma simbiose, requintada no sentido da crueldade X instinto de sobrevivência, cria uma relação amor- ódio. Como acontece com muitos casais. A tortura destrói a dignidade humana, animaliza, mas também condiciona. Meu professor de Psicologia Social, Dalton, era padre da Igreja da Glória e tinha conhecimento de causa. Voltara depois da anistia.

Ouvíamos histórias sobre Geraldo Vandré, chorávamos os desaparecidos, os exilados (“...a volta do irmão do Henfil por tanta gente que partiu/num rabo de foguete”, cantava Elis Regina, divinamente emocionada - E CHORÁVAMOS).

Mas nem tudo parecia um horror. Em 68, fui fazer a cobertura de um show fashion, da FENIT, o “Momento 68”.Lindíssimos, combinando gravatas e sapatos de todas as cores, Caetano Veloso e Gilberto Gil cantavam Alegria, Alegria, suas tropicálias, “ sem lenço e sem documento”, poetando em código os brados da gente brasileira oprimida sem nada entender... Raul Cortez e Walmor Chagas, elegantíssimos, declamavam poesia Drummond, creio, Eliana Pittman, acompanhada de sua mãe Ofélia (seria com ph?) mostrava o seu swing, filha de americano, era diferente das mulatas brasileiras, mas sempre charmosa.

Tudo aconteceu no Clube Sírio e Libanês de Juiz de Fora. Eu fora entrevistar a ceramista Enedy Odette Fasheber de Miranda Sá (que estava no Hotel Pálace, por ter quebrado o pé), depois partira para a camaroada da Escola de samba vencedora no último carnaval, a Feliz Lembrança, no morro, fartíssima, mais camarões que arroz, e depois, usando o chapéu de feltro de um amigo e colocando nele uma pena, para parecer suficientemente “fashion”, cheguei e mostrei a querida carteira:” Imprensa”. Não estava realmente vestida para um evento tão chic, mas ser jovem tem muitas vantagens. O porteiro nem olhou para a minha saia de feltro e sim para o rosto sob o chapéu desabado. Não pude ir em casa trocar de roupa para a entrevista com Gilberto Gil, que ainda nem sonhava em ser Ministro da Cultura, a mais interessante de todas as que já fiz: impressionava-me um jovem falar com tanta propriedade sobre tudo. Caetano, cabelos de carneiro preto, muito brilhantes na cabeleira enorme,eastava irritado porque a salada tinha muito vinagre. Atendeu-me, mas sem muita vontade. Mais tarde conversei com ele numa festa de bambambans, e foi maravilhoso. Lembro de que quando entrei no elevador, ele entrou, com Dedé, a primeira mulher, num vestido preto, mini, como se usava e fiquei deslumbrada com seu desbunde. Era muito diferente de qualquer burguês......

Também íamos ouvir as “Irmãs Costa”: Telminha, Lisieux e Suely, meninas de belas pernas e vozes afinadíssimas, metidas em meias ”arrastão e ” tubinhos – saco”. A mãe, dona Aparecida, fora minha professora de Canto Orfeônico e fizera sem saber talvez, o trio perfeito. Usava-se muito, então, cantar a três vozes e as filhas eram ótimas para tal.Tenho um LP onde a Lisieux ou a Telma cantam com Chico Buarque o magnífico “Eu te amo”, e é de arrepiar... (“Ah, se já jogamos tudo fora, se já perdemos a noção da hora / me diz agora como hei de partir (...) se já cruzamos tanto as nossas pernas / diz com que pernas eu devo partir” (...)

A juventude, hoje, não tem essas matérias deliciosas no currículo escolar. Dona Aparecida chegava ao Colégio Estadual de lambreta, o que era avançado para a época. A mais velha, a hoje consagrada Suely Costa, a compositora, certa feita obrigou, sem querer, os jurados a pedirem dicionáriso para acharem o significado de palavras menos usuais em letras de música popular. Era o tempo dos grandes festivais do Rio de Janeiro e em Juiz de Fora aconteciam prévias memoráveis: Evinha, cantando “ Casaco Marrom ”, ovacionada (era do Trio Esperança, mas estava iniciando a carreira solo ). A letra de “ Casaco Marrom” tinha os elementos que, com aplausos, faziam “ vir abaixo ” o Cine Teatro Central :” Eu vou voltar aos velhos tempos de mim /. Vestir de novo o meu casaco marrom / e sair / Bye bye Cici, nous allons”. Sabíamos que os brasileiros queriam voltar “aos velhos tempos ”, serem eles próprios,terem liberdade para “sair por aí ”... E quantos estavam na França, por exemplo? Em outros solos que não o Nacional, todos sofriam saudades da “Pátriamadabrasil” (a "Pátria-Mãe gentil" que Chico cantava...).

Quando casei-me e fui morar no Rio de Janeiro, ligava o rádio e ouvia Chico:” APESAR DE VOCÊ, AMANHÃ HÁ DE SER, OUTRO DIA ”... Vibravámos com o significado oculto dos recados mandados aos militares, queríamos o direito à peleja (“A MÃO QUE TOCA O VIOLÃO SE FOR PRECISO VAI À LUTA” declarava Geraldo Vandré). Quando o pessoal de Comunicação chamou-me, recentemente, para ir à PUC do Coração Eucarístico aqui em Beagá, para sua nona Semana, que apelidaram de “ Vestígios ”, levei várias fitas de músicas da época, fitas cedidas pela poeta Maria Queiroz, autora de À Flor da Pele... Os universitários mal podiam acreditar que versos tão singelos escondessem mensagens tão poderosas... Que pudessem um dia ter sido proibidas...

Acredito mesmo que muitos compositores escrevessem não tão intencionalmente quanto Francisco Buarque de Holanda, por exemplo às vezes, bem explícito ("Mas o que eu quero é te dizer / que a coisa aqui está preta”)... Como psicóloga, atribuo muita coisa brotada em mesa de bar ou escuro de quarto, esconderijo ou campus universitário, à força do inconsciente coletico, junguianamente... À época, presidi a União Brasileira de Trovadores, seção de Juiz de Fora e escrevi:

Nestes muros tão pichados,
Vejo os conflitos do povo !
E sinto que os desgraçados
Querem ser homens de novo...

Muitos dos trovadores adultos, me advertiram para ter cuidado com versos desse tipo. Fico pensando se não me escolheram para Presidente, tão nova, para protegê-los de maiores dores de cabeça: faria papel de boi-de-piranha, com minha “ inocência”, era filha de militar e blá-blá... Noutro dia, por telefone, perguntei isso ao Hegel Pontes, exímio trovador da época, que me assegurou não ser verdadeira essa minha hipótese, que eu fora escolhida pela minha doçura (sic), porque me dava bem com todos os grupos rivais trovadorescos (ainda hoje há remanescentes)... Seja isso, então...

Liguei para o Professor Luís Lyrio, há pouco, antes de começar a escrever, à procura de mais convites para o lançamentoo número 2 da revista Estalo. Ele estava na Assembléia Legislativa, pois sendo hoje o 31 de março, havia lá um movimento alusivo ao” Tortura nunca mais”, claro. Contou-me que lhe destinaram um lugar muito acanhado para a venda de “ Nos Idos de 68”. Um conhecido para para conversar e comprara um. UM LYRIO entre muitas flores, pensei, imaginando-o meio escondido sem querer.E deveriam comprá-lo. É um relato muito fiel desse escritor que namorou, sabiam, uma irmã do Henfil e do Betinho, guerrilheira e tudo... A história é saborosa, narrando o amor com odor de lírios no pântano da Ditadura, florescido nos “ aparelhos”, demonstrando com simplicidade o tabu da virgindade para os jovens de hoje em dia, que dele somente ouvem falar como alusão “No meu tempo não era assim”, clamam avós e pais, professores. Pois o amor, a paixão florescia. Apesar de. Muito bom de ler, tomara que venda horrores, que tenha múltiplas edições, que fique famoso, por ser transparente e genuíno como chá e cachaça. E posso falar, pois somente agora conheço o Luiz Lyrio, procurada por ele para escrever em ESTALO..

Falta um minuto para as dezoito horas. O dia acaba, o “ aniversário ” da Revolução (!) também. Lyrio ria ao me dizer que uma emissora de TV o chamara para um debate, mas depois desmarcara, porque ele não fora torturado.Rimos muito. Eu também não fui... Mas como sofremos pela tortura de nossos amigos, parentes e desconhecidos, como sofremos!... A HISTÓRIA é para ser contada, quantas vezes seja necessário recontá-la. Enquanto há testemunhas do seu tempo, melhor...

VI a coisa principiar a acontecer. Dia 31. Estava no Sul de Minas, em Bicas do Meio, a REPI, Rede -Elétrica Piquete Itajubá, uma usina / vila militar.Cheguei no murinho, de onde se via a cidadela.Estava sitiada.Erguiam-se muros,de sacos. Barricadas sem barris. Soldadinhos - aqueles meninos pouco mais velhos que eu-armados até os dfentes. Meu pai não vinha almoçar. De vez em quando, ele que é muito corado, aparecia, pálido, fazendo serão desde a véspera, pegava o telefone e ligava para as paradas de ônibus, pois mamãe estava indo para... Juiz de Fora, para onde voltaríamos em breve, procurar casa... Ele pedia-lhe que retornasse. Ela, sempre muito decidida, estranhava e ria: ”Estou na metade do caminho”. E não voltou. Chegou à rodoviária e encontrou a Revolução, partida de lá, coisas do General, dos bastidores, dos mistérios de certas mentes...

Dizem que a Ditadura foi um momento histórico que ainda está muito perto para ser bem compreendido, ouvi de um expert... Não concordo. Quando o Tempo esgarçar a manta da História, tornar rota qualquer explicação lógica, e não houver mais vozes de vivência, somente a leitura dos livros dos que sobrarão, (autores do real, mesmo os não torturados, certo, produtores de programas de TV?) será a única alternativa para se entender o que aconteceu nos Anos de Chumbo, onde a paranóia bordava canutilhos e strass para simular BRILHANTES enganadores...

Clevane Pessoa

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(*) ” Nas velas do tempo “era um verso da compositora Leny Tristão, aplaudidíssima quando subiu ao palco vestida com a luz dos cabelos vermelhos, e um chale gigantesco,ao serfoi classificada em um dos festivais... Preciso ir à biblioteca, pública, em Juiz de Fora, para consultar meus próprios escritos... A Gazeta acabou-se, dizem que Itamar Franco comprou-a, simbolicamente, para ajudar ao seu Theo, quando este envelheceu, mas eu já andava no Maranhão, não sei se é fato ou boato... Os jornais antigos ficavam encadernados em capa grossa, no tamanho real, para consulta... Onde estarão? Quem souber, conte-me, que a contadora de história precisa saber detalhes de suas próprias vivências. NAS VELAS DO TEMPO sopra o vento, sempre... Clevane

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