GARIMPEIROS URBANOS

Da janela de meu apartamento, todos os dias, assisto tenebrosos espetáculos. Homens e mulheres, de variadas idades e raças, em horários diversos, aproximam-se de uma moderna lixeira metálica que, elevada alguns centímetros do chão, cumpre com eficiência a sua função de impedir que outros bichos tenham acesso ao seu conteúdo. Chegam sujos, aparentemente cansados e mal-nutridos àquele oásis de metal suspenso, nessa longa travessia de uma vida estéril de tudo. São quase sempre silenciosos e suas palavras confusas, em vozes que beiram o inaudível, nos resmungos chochos e em discursos veementes que alguns deles proferem a espectadores singulares, ou a platéias imaginárias, tão convenientemente invisíveis a nós, quanto os seus oradores. É possível que se dirijam tão somente a si mesmos, já que, não havendo com quem possam falar, dão a si a oportunidade que nós, irredutíveis, lhes negamos: a de serem ouvidos. Pode ser que dialoguem com seus demônios sádicos e cruéis que sistematicam e! nte os barbarizam, ou com os seus indolentes anjos da guarda, ora maldizendo a vida de dignidade escassa, ora bendizendo a lixeira farta, num monótono e interminável “a tudo dai graças”.
Desprezados pelos homens, mas acolhidos por Deus, são pacientes e perseverantes, embora, reconheçamos, sejam por vezes presunçosos, pois, crêem que, por terem sido privados, durante toda a vida terrena, até da condição de humanos, serão compensados com a mais ambicionada das recompensas, aquela que nem mesmo o homem mais rico sobre a Terra, ou o mais venerado dos faraós, mumificado e encerrado em portentoso túmulo piramidal, com seus incomensuráveis tesouros, numerosas esposas e incontáveis escravos, poderão barganhar: assentarem-se eternamente à direita do Pai. Entretanto, são conscientes de que essa graça só será definitivamente alcançada, depois de terem superado os três estágios necessários: a morte, bem menos dolorosa do que a vida; a longa e solitária espera no seio da terra e... O Juízo Final; só então e para sempre esses “últimos serão os primeiros”.
Esses garimpeiros do lixo vêem pelas pontas dos dedos que se emaranham desprotegidos pelas trouxas plásticas contaminadas por nossa podridão. Têm uma sensibilidade só comparada à dos cegos bem treinados. Em poucas apalpadelas sabem em que sacos encontrarão o que lhes servirá para comer, beber, vestir ou calçar, ou ainda o que poderão trocar por algumas moedas num mercado que, menos pela consciência ambiental e mais pela premência imposta pela miséria, tornou-se tão promissor: o de recicláveis – duas razões para se renderem ao mesmo imperativo: sobreviver!
Num final de manhã, voltando para casa após um compromisso cotidiano, passava por uma elegante praça de minha cidade e uma cena chamou-me a atenção e gravou-se sem prévia licença em minha mente: um homem magro, mas de boa compleição, de pele muito queimada pelo sol e coberta pela sujeira de muitos dias sem banho, em calças enegrecidas e esfarrapadas, tinha o busto nu e inclinava-se sobre os sacos de lixo postados sobre o chão, ali colocados pelos empregados de um restaurante tão elegante, quanto a praça em que se localiza.
Com a voracidade das feras famintas o homem escarafunchava com apenas uma das mãos, os sacos bem atados. Em poucos segundos entendi por que ele não usava as duas mãos para satisfazer a sua avidez. Seu outro braço pendia ao lado do corpo, balançava sem comando, como se morto estivesse, resultado de uma fratura na altura do úmero, que não precisava estar exposta para ser evidente. A mão e o antebraço daquele lado estavam muito inchados e o que mais me surpreendia era que o homem não aparentava sentir qualquer dor, apenas fome, muita fome.
Totalmente absorvido pela busca do alimento rejeitado e indiferente às regras da melhor etiqueta, o homem encontrou uma pequena marmita descartável de alumínio em que jaziam as sobras de uma refeição frugal. Ignorava a existência de outros materiais impróprios misturados àqueles restos degenerados, expondo a um risco maior, porém necessário e urgente, a sua já precária saúde. Tentava entupir com o máximo de comida e no menor tempo possível a boca em que alguns cacos, vagas referências ao que um dia foram dentes, mais teimosos que fortes, permitiam-se observar, enquanto mastigava pouco, rápido e engolia com sofreguidão alucinada. Os cabelos um dia lisos estavam espessos de imundície e a barba negra era pontuada de branco pelas migalhas de pão seco e grãos de arroz endurecidos que lhe escapavam ao afã.
Poucas foram as vezes em que Deus me pareceu mero invento de dominação de homens sobre homens e aquela foi uma em que perguntei a mim mesmo onde estava Sua consistência, Sua justiça e Seu amor.
Que qualidades ou defeitos justificariam tamanhas disparidades entre nós? Em essência, que diferenças há entre mim e aquele indigente? Entre os que todos os dias garimpam minhas excrescências e os que habitam castelos com educação primorosa e fartura à mesa, sufocados por tanto zelo? Quais as diferenças entre meus filhos e as crianças drogadas, violentadas, prostituídas e mortas, dia após dia, noite após noite nos becos e nos guetos de nossas cidades? Quem responderá por essas vidas que se esvaem como a areia na cúpula de uma ampulheta que jamais se conseguirá reverter? Quem estancará seus sangues e amparará suas lágrimas quando chorarem sós nas madrugadas de medo e abandono? Quem terá a coragem, ou o cinismo de lhes dar os parabéns em seus aniversários e lhes desejar que suas vidas sejam longas? Quem os velará ainda que só depois de mortos? Quem lhes dará uma chance e depois nova chance e depois tantas outras quantas forem necessárias, até que possam voltar a ser apenas, ge n! te?
Dirão os reencarnacionistas que tudo se encaixará com a lei do retorno e dos ciclos sucessivos de aprendizado. Ora, os ciclos!
E no tradicionalíssimo restaurante, momentaneamente ou para sempre despercebidos de que nem o dinheiro, nem o poder conseguirão nos isolar das conseqüências e dos reflexos do que acontece até ao mais desprezível dos párias, casais bem vestidos e sisudos homens de negócios enfileiravam-se para o antepasto.

Elcio Domingues

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