O PEDREIRO

       A todos que lutam pela erradicação da hanseníase   

      Saía  do restaurante, onde havia me deliciado com uma  moqueca de peixe e um ótimo vinho branco. Domingo, dia de transgressões, me permiti um pavê crocante dos mais calóricos. Saí nas nuvens pelas ruas.
      Diante de uma loja recém-inaugurada, ao lado de um famoso banco internacional, encontrei um homem. Era escuro, com fios brancos na cabeça, e estendia as mãos, com notas de um real sobre elas. As pessoas se afastavam. Parei, pois  senti que havia algo além  naquela cena. Não era um lugar-comum. Olhei suas  mãos e vi que era hanseniano. Logo vasculhei minha  bolsa para ver quanto tinha disponível e dei a ele algum trocado. Perguntei sobre o tratamento que fazia, e ele me explicou, antes dizendo: — Fui  um excelente pedreiro, até que...  Fiz com que não prosseguisse a frase: Você é um excelente pedreiro, e, sempre será!  Agora não pode exercer sua profissão. É isso. Não diga fui. Diga sempre: —  Sou. E decidi ir fundo naquela história.  Ele contou que morava com mais dois companheiros que estavam na mesma condição física que ele. A casa  era pobre, pois não tinham como sobreviver decentemente com a situação que atravessavam. Adoeceram em épocas diversas, mas os atendimentos no mesmo posto de saúde, as dificuldades que vivenciaram juntos, fizeram com que uma amizade muito grande florescesse entre eles, como se fossem irmãos, e se conhecessem desde sempre.
      Seu nome era Joaquim. Sobre as agruras do tratamento de sua doença, teceu um rosário. A falta de tato e delicadeza em muitos profissionais que o atendiam, incluindo aí também  um boa dose de  má vontade, muitas vezes, quase o levaram ao desespero, mas tinha fé em São Jorge e sempre acendia sua velinha. Conseguia então se acalmar. Os curativos muitas vezes tinham que ser pagos, pois recorria a profissionais fora da rede pública também. 
      A necessidade material fez com que se tornasse mais um pedinte nas ruas, embora a discriminação, quase que generalizada, faça com que sua presença cause repulsa, e as pessoas joguem o dinheiro sobre o seu braço, evitando aproximar-se de suas mãos mutiladas. 
      Fiquei pensando no sofrimento físico e moral dessas pessoas. Refleti também sobre  outros tipos de  doenças, que levam a essa via crucis.          Joaquim narra o caso do amigo Cesinha, que, numa festa de São João, tendo ficado próximo a uma fogueira, mesmo trajado de forma a se proteger, queimou-se gravemente nas pernas, pois já estava com um grau de insensibilidade grande, que não permitia que sentisse o fogo a queimá-lo. Ficou muito tempo internado e, ainda, trata das feridas adquiridas na ocasião. Hoje, mal anda, e tristeza e inconformação marcam o passar de seus dias.
      Joaquim não se entrega, e, apesar das dificuldades, parece ter a força do pedreiro dentro dele. E começa a falar do segundo amigo, Zeca, que já tem a  perna amputada, bem como parte das falanges. Zeca é tão triste que Joaquim não consegue falar sobre ele, senão que perdeu a família  tão logo declarou sua  moléstia. Fugiram dele como o diabo deve fugir da cruz.
      E me vêm à mente as cenas dos filmes bíblicos, quando, com uma sineta, mostravam que estavam a caminho, para que todos se afastassem. A discriminação continua. O que necessitamos é de uma política de conscientização sobre a doença, que é tratável e curável. A abordagem de seus sintomas, levaria muitos a detecção em fase inicial, com maiores chances no tratamento, evitando-se  complicações. É  difícil um programa permanente em nível de alcance nacional,  que  torne viáveis a  prevenção e o diagnóstico precoce de inúmeras doenças? Evitar-se-iam os imensos transtornos, gastos e sofrimentos que uma doença detectada em fase avançada acarreta.
Tantos séculos se passaram, mas em relação  à  hanseníase, por exemplo, o preconceito é o mesmo. A causa é, simplesmente, a ignorância. O povo em geral desconhece o que seja hanseníase, tem medo e foge dos doentes. Até quando o homem tecnológico temerá uma doença da  antigüidade?
      À luta, amigos! Que recuperemos tanto tempo perdido. Vamos erradicar a hanseníase de nosso país; mas, antes, olhemos com carinho e compreensão para os que, em sua trajetória, esbarraram com ela e, hoje, mutilados, sofrem, e choram, sem muitas esperanças no amanhã. Vamos ler e compreender o que é hanseníase para que acabemos com o pior dos males: o preconceito, que gera a discriminação.
      Questiono nosso Sistema de Saúde. Como pôde ser tão  sucateado? A Constituição é clara quando diz que Saúde é dever do Estado. É tempo de cobrança, de se reivindicar Direitos, pois nossos Deveres são cumpridos, pagamos altos impostos, e "nada vai bem."

      Sentada,  olhando para o firmamento, imagino  Joaquim  construindo uma casa. Seus cabelos são negros, dedos ágeis. Cantarola feliz no seu dia a dia. Cheio de jovialidade, faz planos para o futuro e seus sonhos, sempre são coloridos.

Belvedere

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