O BONDE 

Eram oito horas da manhã. Eu estava num bonde que ia de Ipanema à Copacabana.

Que fazia eu, num feriado às vésperas do Carnaval, naquele bonde? Eu fugia.

Eu deixava uma casa de dois pavimentos em Ipanema, na Rua Principal, a Visconde de Pirajá, residência de classe média, e corria dali, eu, uma adolescente de uns 14 anos, para o apartamento de um só cômodo, onde morava meu padrinho de batismo, para.... exclusivamente usufruir da companhia dele — hoje chamaríamos "curtir".

Nas vésperas de Carnaval, meu padrinho recebia muitas encomendas de shorts e bermudas, que ele, costurava, para aquela porção de boêmios da vida noturna de Copacabana usar. Ele era homossexual e havia entre suas clientes também as coristas do "Teatro Rebolado" pedindo retoques em alguma fantasia.

Sabem também por quê eu ia para lá? Porque "aquela gente" me chamava de "Clarissinha" e eram todos carinhos para comigo, por ser eu afilhada do "Gaspar". Na hora de buscar uma comida na rua, lá embaixo, eles perguntavam o que eu gostaria de comer, e meu padrinho acrescentava:

— Ela não come carne, é hindu.

Como "eles" já haviam visto de tudo na vida e também experimentado boa parte de extravagância, achavam isso perfeitamente natural, e sem mais perguntas, traziam o que eu podia comer... Atitude muito diferente do pessoal de minha casa, onde, espantados, abriam os olhos e comentavam:

— Mas isso é muito mal, a carne tem proteínas!

No Carnaval, eu resolvi sair vestida com o sarong listrado das Baiaderas hindús – as "Prostitutas Sagradas". E foi lá no apartamento que uma ex-corista, grávida de seu primeiro casamento, uma verdadeira realização para ela pois tinha sido criada num orfanato de freiras, conseguiu enrolar o sarong de forma que me desse folga para eu caminhar, porque meu tio o enrolara de tal maneira que eu mal conseguia andar.

Dela mesma, já com a filha de uns dois anos, ouvi:

— Separei-me de meu marido, porque ele trazia um homem para a nossa cama, a fim de fazermos uma surubada. E eu então, pensei: “se é para ser puta, que eu seja sozinha.” Foi muito feliz no segundo casamento e adotou outra filha.

Eu pensava naquela casa preconceituosa que eu deixara naquela manhã, tão cedo, eu, a esquisita Clarisse para eles...

E onde está esse bonde?

Talvez tenha morrido numa estação e os pedaços de seu "corpo" levados para um ferro-velho, após o decreto de retirada dos bondes, ou... para o espaço, para onde for um dia meu espírito, navegando nele sem fuga, com outros espíritos que viveram a segregação moral, com muita tolerância dentro de si mesmos, para suportar, na Terra, os habitantes da burguesia da classe média...

Clarisse de Oliveira

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