Sobre o "Crime na Calle Relator" (*)
(livros com poemas narrativos de 1985-1987)
Essa "História de pontes" é uma história que me contram no Recife quando eu era menino, é uma história assim meio de assombração. Não sei, eu quis reconstituir um pouco aquela atmosfera noturna, daquelas pontes do Recife. Você, de madrugada, atravessar uma daquelas pontes do Recife, dá uma idéia de solidão absoluta. Porque você ouve os passos do sujeito que está a 200 metroes de distância. Porque não tem ninguém na rua. Você cruzar com um sujeito no meio da rua... a rua tem casa de cada lado, tem janela, tem porta. Agora, você cruzar com um sujeito no meio de uma ponte, de noite, de madrugada, realmente é uma aventura. O cara pode meter uma faca em você. Atravessar uma ponte do Recife de madrugada, você não tinha trânsito: não tinha mais bonde, não tinha mais ônibus, automóvel... E hoje é assim ainda.Eu termino o poema com uma brincadeira, dizendo que o sujeito foi para a Tamarineira, onde o tio Ulysses, que era meu tio, psiquiatra, curou-o. Essa história talvez seja uma história do século passado, tio Ulysses nem era vivo. Mas já que eu estava fazendo um poema, eu disse que ele foi para a Tamarineira, que era o maior hospital de loucos do Recife, e que tio Ulysses, que foi, na minha infância, diretor do hospital, o curou. Por que eu ia dizer que ele foi para a Tamarineira onde um psiquiatra o curou? Fica uma experiência muito mais tocável eu botar tio Ulysses. Aí o leitor vê que é uma pessoa e não um psiquiatra. Assim eu dou uma visualidade que, se eu pusesse "um psiquiatra" não daria.
João Cabral de Melo Neto
(*) Resposta ao crítico literário Luís Costa Lima, 34 Letras, Rio de Janeiro, nº 3, março de 1989, in "Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto", org. Félix de Athayde, UMC e Bibl. Nac., Mogi das Cruzes/Rio de Janeiro, 4ª impressão, 1998.