Sou uma workaholic declarada e confessa. Outro dia, fui fazer um teste virtual, para medir o meu grau de “demasia” no trabalho, e fiquei contente, ainda estou apenas no grupo de risco... Isso, naturalmente, porque, na pergunta: "você trabalha mais de 45 horas por semana", eu respondi apenas com um simples sim (era sim ou não). Detalhasse eu mais, dizendo que trabalho cerca de 105 horas semanais, queria ver se eu continuaria dentro da categoria do "ainda razoável"... risos.
Não foi sempre assim, lógico. Quando eu advogava, queria sair logo do trabalho e não pensar mais nele... sem falar que tive um problema de rim e um começo de úlcera nervosa... Mas, depois que eu abandonei o jurídico pelo literário, não só a palavra paroxítona mudou... Começa que, para se ganhar o sustento diário, é preciso não rejeitar trabalho (ao contrário, dar graças a deus quando aparecem vários, aproveitar a chance, porque pode haver enormes períodos de calmaria); não dá para se “especializar” em um estilo único, porque, na falta de oportunidades em um terreno, embrenha-se por outro; por fim, quando se trata de literatura, se você pára de escrever para se divertir lendo, a leitura gera idéias, e aí você anotar um insight, e acaba trabalhando no texto, em seu horário de lazer-leitura. Trabalhar no que se adora, no que se tem paixão é "descansar carregando pedras", mesmo que sejam pedras cenográficas, feitas de espumas. De qualquer modo, no ato de precisar carregá-las, mesmo por hobby, já se descaracteriza o ócio.
A situação tem mais um dado complicador quando você trabalha diariamente em um site que cresce vertiginosamente, a cada dia. Aí, você própria fica perguntando-se: será lazer ter o dever (moral) de trabalhar dez horas por dia nele, em detrimento de sua própria carreira profissional? Blocos é constituído dessa “dupla personalidade”: lazer-dever, e na inerente relação vivencial de termos consciência de onde começa um e acaba outro. As fronteiras são muito tênues, se pensarmos que, nesse caso, mesmo no dever, há lazer, e, mesmo no lazer, há o compromisso com a atualização diária. Haverá sempre quem pergunte: e precisa haver barreiras? Em um mundo maniqueísta como nosso, aboli-las é sair fora da realidade do mundo que nos cerca, é esbarrar, ironicamente, em muitas outros limites — até mesmo os da sanidade. Ou abrir exceção para fazer-se análise de textos o tempo todo textos de graça, mesmo quando vivemos profissionalmente desse trabalho. Que lazer é esse que gera, em certos momentos, mais questionamentos do que propriamente alegria? Trata-se de um lazer poético (poiético, de poiesis), capaz de multiplicar perguntas, sem precisar impor soluções.
Se é meio complicado para quem faz Blocos, imagina para os que estão mais distantes e, dentre esses, muitos que encaram o portal é um mero passatempo – palavra sempre meio que depreciativa, ligada a divertimentos (palavras cruzadas, bate-papo nos orkuts, assistir novelas de TV, etc.) – como se os passatempos, todos eles, não carregassem as suas próprias ideologias embutidas. No fundo, o lazer ainda é visto como supérfluo, quando, ao contrário, deveria ser tão importante quanto o próprio trabalho. Bom, mas não vamos divagar. O fato é que dessa aparente ausência de fronteiras lazer-dever eu acabo trabalhando quinze ou mais horas por dia: dez em Blocos e mais cinco para mim, sem hora de almoço (e olha que só janto...). No entanto, esse “recreio”, muitas vezes não é tão divertido quanto a princípio se imagina, principalmente quando as pessoas pensam que somos robôs talvez, e não dizem uma palavra de cortesia: oi, tudo bom? obrigada por divulgar meu poema ou meu conto; você está bem?; posso ajudar em alguma coisa? Nos textos literários, os temas são fraternidade, união, confraternização, mas, já sabemos, a prática é diversa. E, de repente, dependendo do dia, você fica com aquele sentimento enorme de isolamento, justamente por querer fazer um trabalho em que a coletividade tenha mais espaço do que você mesmo, em uma demonstração inequívoca de crença de que o mundo tão grande, dá para todos.
Eu sempre aprendo dentro de minha profissão de escritora ao responder e-mails ("escrever é a ponta do iceberg", como já disse Lacan). É no dia-a-dia que exercito diariamente minha sensibilidade, até onde vão meus limites pessoais, além de conhecer melhora alma humana. No entanto, há ainda alguns incidentes de percursos cansativos, quando você lida com o público, ainda mais um público de escritores, muitos, infelizmente, bastante egocêntricos e egóicos. Entre os desgastes diários estão: a “cobrança de erros”, como se tivéssemos obrigação de sermos perfeitos; o envio das mensagens com “autor desconhecido”, (mesmo quando deixo claro, abertamente, que o portal não divulga esse material, continuam me enviando, e fico pensando se quem os manda não se importa com direitos autorais, ou não se importa com quem se importa com eles); pedir divulgação para sites que não têm essa gentileza recíproca; descobrir algum erro depois de meses que a página está online (não sei o que me deixa mais triste: a falta de revisão ou o pouco interesse de conferir a página no site), fazendo com que o mesmo trabalho seja feito duas vezes; mandar o mesmo trabalho para todos os sites culturais na Internet, mostrando que nenhum é especial, a ponto de merecer um tratamento diferenciado; etc., etc., etc.
Agora, temos também o orkut, uma idéia genial, eu acho, porque faz com que conheçamos um pouco mais as pessoas, uma a uma, com suas características, preferências e preocupações. Não precisa mais alguém dizer: sou assim ou não gosto daquilo. Lendo-se as comunidades a que pertencem, podemos delinear os traços gerais dos perfis delas, através de suas "afinidades eletivas", como diria Mário de Andrade, entendendo melhor, também, teoria críticas da pós-modernidade, analisadas através de sociólogos como Mafessoli com relação às tribos contemporâneas. Tudo estava muito bom, até chegar o flood para atrapalhar. O flood é um programa executável que faz com que as pessoas economizem tempo, e mandem uma única mensagem para todos, para comunicar-se mais rápido. Não percebem que perdem, com isso, a própria comunicação pessoal e intransferível, e transformam o orkut em um grande spam – utilitário e sem graça. Dá trabalho manter mil amigos? Então só tenha dez, mas fale com cada um, respeitando as diferenças e não jogando "todos os gatos no mesmo saco" (mesmo gatos, cada um tem um temperamento), Isso quando, por impaciência, uma mensagem é enviada várias vezes, sem a pessoa ter o cuidado de verificar e de deletar as repetições. A pressa, nesses casos, não é inimiga da perfeição, mas sim da civilidade. É isso que dá se querer “levar vantagem em tudo”: acaba-se com a conversa gostosa olho a olho – característica que eu gosto tanto no orkut – as fotos – para se falar uma única vez, ao mesmo tempo, com todos, em um diálogo clônico – para usarmos a terminologia teledramatúrgica – massificado e igual, mera comunicação coletiva a mil pessoas e não uma conversa público-particular a dois. Entram no orkut apenas para divulgar mais mensagens rapidamente, não para curtir as pessoas, dentro de cada ritmo deliciosamente único.
Ainda no orkut há uma “reversão de expectativa” muito interessante que mostra o quanto a amabilidade anda em déficit: quando você percebe que alguém entrou em sua comunidade, você lhe dá as boas-vindas. No entanto, em geral, ninguém está nem para aí quem entra, só quer saber de ampliar a comunidade: tantos mil... – o número, a princípio, parece que dá status ao responsável, quando na verdade, dá ibope apenas para o tema da comunidade... Bom, mas aí acontece, muitas vezes, que a pessoa não agradece a gentileza das boas-vindas, agradece o convite, dando a impressão de que você o achou e o adicionou sabe-se lá como. Têm uns que chegam a perguntar: como você me achou? Ou seja, entrou na comunidade, nãose deu ao trabalho de ler o nome do responsável, recebeu uma mensagem de boas-vindas e ainda deixa você mal, porque quem lê dá a impressão que você está enviando convite para o orkut inteiro, indiscriminadamente... No entanto, se o espírito do orkut é o de ampliação do “diâmetro de sua rede de amigos”, não se tentar relacionar de quem se aproxima de nós fere, esvazia e descaracetriza todo o projeto, desmoronando o que ele tem de construtivo: a originalidade de cada mensagem, de cada momento de cada um.
Porém, lógico, nem só de floods, spams e desatenções vivem os escritores – ainda bem. A criatividade não reside apenas, isoladamente, nas colaborações literárias remetidas: está no orkut, nas mails, nos chats, nas conversas paralelas, nas particularidades dos diálogos, na sensibilidade de uma resposta, de uma procura de informação, de um beijo enviado, mesmo às pressoas, está na vida enfim, em movimento contínuo e perpétuo vinte e quatro horas do dia. E é por isso que eu não considero o meu "workaholitismo" como defeito; sua medida equivale a minha desmedida paixão pela literatura, é portanto, um ato ininterrupto de amor.
Leila Míccolis