A minha noruega
O memorialista Pedro Nava inicia o seu “Balão Cativo” dizendo que “aquela encosta do morro e a sombra que dele se derramava sobre a chácara de Inhá Luísa ficaram representando o lado noruega da minha infância. Nunca batido de sol. Sempre no escuro. Todo úmido, pardo e verde, pardo e escorrendo.” Lendo esse trecho fiquei pensando que todos nós temos essa noruega na infância, esse lugar úmido, frio, escuro...
A minha noruega ficava na casa em que moramos quando eu era criança de cinco, seis, sete anos, uma casa grande, velha, mal construída, cheia de acréscimos e de lugares esquisitos, degraus que se desciam para subi-los de novo, paredes que nunca eram em ângulo reto, portas que não fechavam direito, cômodos que iam se estreitando, tudo errado, tudo torto, nada obedecendo a esquadro.
A noruega, no caso, era a cozinha: lugar escuro, úmido, sem janelas, apenas com combongós em uma das paredes que deixavam filtrar uma luz mortiça, uma vez que no exterior dessa parede o sol não batia diretamente, pois era quebrado por um pequeno telheiro. O cômodo era retangular, e entrava-se nele por uma porta estreita a um canto do lado mais largo. Descia-se dois degraus e pronto: o chão de cimento, a penumbra, o fogão de carvão sempre aceso na parede em frente, com suas bocas vermelhas e quentes, quebrando a umidade do ambiente. Encostada à parede oposta, a mesa de madeira velha e descascada com a bacia para lavar a louça e os outros apetrechos de cozinha, e o chão de cimento úmido e porejando água nas frias manhãs de Campina Grande. Era a minha noruega, a cozinha da casa da rua padre Ibiapina, numero 123.
Sentávamos eu e Braulio nos degraus, quietinhos para não atrapalhar as mulheres: Mamãe, Titia (minha tia Adiza, solteirona convicta, que morou sempre conosco), e as empregadas e agregadas: Dona Maria Preta, Severina de João Congo e Maria de Severina, filha desta última. Esse mundo feminino, que se estruturava em volta das panelas, nos iniciava nos mistérios do mundo adulto. Sentadinhos ali, passávamos despercebidos e eu, que era mais velha e mais atenta do que Braulio, ouvia tudo, compreendia tudo, tomava conhecimento de tudo. De vem em quando uma das mulheres dava pela nossa presença e dizia: “Saiam daí, vão brincar lá fora, levantem, esse chão frio faz mal...” E logo se esquecia da gente de novo e ficávamos ouvindo histórias da infância e da juventude delas na fazenda, casos de morte, vinganças de família, rapto de moças, histórias de almas, de cangaceiros, tudo isso misturado com o rico e atual caldo da fofoca da vizinhança, onde se falava do filho da vizinha que bebia, da filha da outra que estava noiva e o noivo não queria casar, e muito, muito de política, tema de que todas elas gostavam e com o qual se envolviam muito.
Num dia de agosto, a minha noruega se abalou, e um clamor se espalhou pela cozinha: “Getúlio morreu!” “Mas morreu como?” perguntou Titia. Mamãe esclareceu: “Mataram ele.” Era 24 de agosto de 1954, eu tinha seis anos de idade e nunca consegui esquecer o clima pesado que baixou sobre a cozinha. O rádio dava as notícias e as mulheres largaram panelas e temperos para escutá-las na sala de jantar. Depois, de volta à cozinha, os comentários: “Estão dizendo que foi suicídio”, disse Titia. “Que suicídio que nada! Mataram ele porque ele era o pai dos pobres”, era a opinião de Mamãe. Dona Maria chorava silenciosamente, com as lágrimas descendo pela face. E foi assim, em clima de velório, que ficamos até o enterro, tudo transmitido pelo rádio.
Mas a noruega também tinha seus dias de alegria. Num sábado à noite, as mulheres inventaram de matar um galo para comer no almoço do domingo. Seguindo receita antiga, e para amaciar a carne da ave, resolveram fazê-la engolir algumas doses de cachaça. A cada dose que introduziam goela abaixo do galo, cada uma delas tomava duas ou três, e o resultado é que ficaram bêbadas demais e não mataram o bicho direito, que ficou semidegolado, caminhando, batendo as asas e espadanando sangue nas paredes da cozinha. Enquanto nós, crianças, gritávamos aterrorizados, as mulheres, completamente embriagadas, riam até caírem sentadas no chão, em meio a sangue, penas e facas ensangüentadas.
Memórias de infância, episódios sepultados na teia do passado, reativados pela simples leitura de uma frase: tem coisa melhor no mundo, meu caro leitor?
Clotilde Tavares
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