O Labirinto de Adam Trask

Quando meu pai se despede de sua memória, quando o tempo penetra num labirinto que aprisiona sua sanidade, Daniel, meu filho, escreve para ele uma declaração de amor, declaração editada no jornal A Voz da Serra e que li para ele ontem, no hospital. O labirinto teve dó e abriu uma pequeníssima porta, uma passagem sutil, tão sutil que só permitiu passar duas lágrimas que rolaram de seus olhos enquanto eu lia .
Segue abaixo o texto:

Agora vou falar um pouco sobre o meu avô, Álvaro Frazão.

         Tenho a mania de classificar todo mundo literáriamente; acredito que todos possam ser taxados dentro de um padrão literário. Existem pessoas que dariam ótimos personagens de poemas, outras de contos, outras de letras de música, outras de novelas e por aí afora. Meu avô é o típico protagonista de uma saga. O típico protagonista de uma saga de John Steinbeck.

         Steinbeck teria gostado de escrever sobre ele. O meu avô se encaixa perfeitamente em suas histórias. É um daqueles homens que parecem com troncos de árvores, que se solidificam; enfim, um daqueles trágicos heróis das grandes sagas.

         Li um livro do Steinbeck chamado A Leste do Éden. Também existe o filme (outra obra prima), chamado Vidas Amargas, estrelado por James Dean. Mas o livro reflete melhor o que quero falar sobre o meu avô

         O personagem central é um homem cujo nome é Adam Trask, um forasteiro que se instala numa cidadezinha de Salinas e pega para si um pedaço de terra infértil. Adam Trask teve uma visão, e soube na mesma hora que aquele seria o lugar de sua sonhada fazenda. Todos o chamaram de louco, pois aquela terra era puro cascalho, nada nascia naquele chão. O livro inteiro gira em cima de Adam Trask e retrata sua vida como uma saga, descrevendo a passagem dos anos, das décadas, das estações.

         Meu avô é exatamente como Adan Trask. Instalado num solo de cascalhos, persistindo através do vento, do tempo, dos anos e das tempestades. Ele plantou trigo numa terra infértil, estação após estação, de pé, rijo como um tronco de árvore, sobrevivendo aos revezes da natureza e do homem.

         No início do livro Adam Trask é um jovem forasteiro, e a narrativa o acompanha até a velhice, enquanto ele segue adiante, sem jamais perder a convicção em sua fazenda. Isto se perde no filme que tem James Dean como astro, interpretando Cal, o filho de Trask. James Dean dá um show; ele era um gênio, mas fez com que a figura de Adam Trask fosse diminuída. No livro este é o centro de tudo, o centro da saga; a ascensão, a queda e novamente a ascensão.

         Talvez o próprio Steinbeck fosse como Adam Trask, e como o meu avô. Creio que sim. E creio que Steinbeck teria gostado de conhecê-lo, pois ele gostava de sagas, gostava da idéia de uma grande história universal encarnada na figura de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos; o que, afinal, é base de todas as sagas: histórias que descrevem uma verdade (ou uma mentira) universal, focada na figura do indivíduo ou de um grupo de indivíduos. Talvez um dia eu escreva uma saga e use o meu avô como personagem. Por enquanto, ainda sou novo demais, ainda não tenho sagas dentro de mim. Tenho rompantes, conflitos e ápices emocionais, mas não uma saga, não esse "quê" de tronco de árvore tão necessário a empreitadas como essa. Meu avô tem isso. Steinbeck também tinha.

         Enfim, essa foi sobre o meu avô, mas não consegui retratá-lo muito bem. Quem quiser realmente saber como ele é precisa ler John Steinbeck, principalmente A Leste do Éden.

         No fim do livro, quando Adam Trask sofre o derrame e fica catatônico na cama, incapaz de se mover e de se comunicar, seu filho Cal assume a fazenda. Mas não é um final de frustração, é um final de realização. Ele está lá, na cama, mas ainda existe vida nos seus olhos inertes. É como se bem lá no fundo Adam Trask soubesse que conseguiu; a fazenda prosperou, a saga foi firmada. E na próxima estação, quando Cal fincar a enxada na terra, o que ele vai tirar do solo não será cascalho, e sim feijões.

Daniel Frazão

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