A GENTE SOFRE DE TEIMOSO
Eis aqui uma proposta pra você. O que acha de fazer uma viagem, uma das mais importantes de sua vida. Destino: conhecer na Suíça a casa onde morou o filósofo Jean Jacques Rousseau (1712-1778); vai ver também belíssimas paisagens, castelos e milhares de pessoas. Mas vá com calma que a história não é bem assim.
Vamos sair de uma cidadezinha chamada Môrigen, até uma ilha no lago Bielessee. Usaremos bicicleta que tomei emprestado dos amigos. Veja essa cena com uma visão cinematográfica. Pense que alguém lhe empresta uma bicicleta de 21 marchas, e você, analfabeto nesse assunto de tecnologia de duas rodas, viaja mortalmente acabado sem querer passar as respectivas marchas com medo de quebrar o camelo de alumínio dos outros.
A bicicleta na marcha de subida, mal saía do lugar. Os músculos das pernas estavam quase em carne viva, coisas que só se vê na televisão, no programa do Faustão. Mas, enfim, a decisão de conhecer a morada do filósofo, poderia valer mais do que os sofrimentos. Para completar, diga-se que naquele dia, mais de duas mil pessoas davam a volta a pé no lago que tem 45 quilômetros de margens. Eu tinha que cumprimentar todos os caminhantes como manda a postura suíça. Ninguém podia deixar de receber um \"griessa\", que é igual a um \"olá\" no Brasil.
Um imperador do maracatu na bicicleta com dores por todos os lados, quase inconsciente, torturado pelas 21 marchas. Deveria ter percebido que as catracas são sucessivas, como sucessivos são os séculos que nos separam de Rousseau.
Consegui extrair um pouco de energia da bonita cidade medieval chamada Erlach, com seu castelo e uma fonte que jorrou em mim o desejo de desistir da experiência e deixar o domicílio monumental de Rousseau para outros viajantes.
Cheguei à parte da Suíça onde falam francês. O lado alemão estava distante e significava que se eu ainda não tinha deixado o globo terrestre, era porque existiam mais alguns centímetros de vida pela frente. Afinal, a gente sofre de teimoso, diz a música.
O passo seguinte foi entrar na estrada que liga a margem do lago à ilha, famigerada ilha, a essas alturas, já estava em pré-coma de tanto pedalar em vão. Um suíço-francês passou assobiando na bicicleta vindo do lado da história e eu assinava um dia de pedaladas que mais valia por cinco anos de forças de toda a minha vida.
Alcancei o principal objetivo: a casa do homem que é famoso em todas as universidades do mundo. A cama, o tapete, alguns objetos pessoais e o aparelho de calefação em louça. Poderia ter procurado tantas outras casas de pessoas famosas, como Pablo Picasso, Freud, Vincent Van Gogh, Glauber Rocha, Edmilson Vieira, (ôpa!!!), mas não, ali, castigado por uma marcha de bicicletas como se tivesse subido os oito mil metros do Everest ou corrido a maratona de Nova York.
Mais desesperado permaneci quando lembrei da volta. Teria de enfrentar as mesmas condições surrealistas. Seriam dois pneus regressando, a serviço da desgraça alheia.
Passado o tempo, castigo as palavras, mas considero lucrativa a viagem até a casa do Aristóteles do nosso tempo. O saldo da viagem foi: uma figura morta, o filósofo, e outra semimorta, o bicicletósofo.
Edmilson Vieira