O ARTISTA É O DOENTE E O MÉDICO DE SI PRÓPRIO
NELSON FACHINELLI é um dos mais importantes ativistas culturais deste Pago Grande do Sul e da bem-amada Porto Alegre, como ele a chama.
E hoje, mais do que dantes, porque o tempo o transformou em folclore, no bom "folk lore", justificado pela constância de atos, gestos e fatos que o tornam, no mínimo, diferente dos outros, amoroso, inesquecível ao coração do povo da Poesia e do associativismo literário.
Tudo se deve, em boa parte, à abertura de espaços públicos para o extravasamento daquela gana de “ser visto”, que está na cabeça das pessoas da base popular, sempre desejosas de sair do anonimato através da divulgação dos seus mais íntimos anseios, enfim, daquilo que pensam e acreditam ser arte e verdade.
Não chegam a se aperceber que, para o verdadeiro poeta, a eventual glorificação vai ocorrer muito tempo depois da morte do artista da palavra. Leva-se tempo para chegar ao podium, ainda mais no beletrismo. Na arte da escrita, o tempo sempre é o melhor juiz.
E Nelson, o ativista renomado, vai fazendo a travessia dos rios tormentosos. Tornando exeqüíveis coisas, eventos, aglutinando e dinamizando pessoas, dignificando-as segundo suas disponibilidades e talentos. Imantando a todos, deixando todos muito felizes
Falo com certa empolgação porque o nosso homenageado está completando 70 anos e continua fazendo isto com e por muito amor, apesar do seu coração já cansado de bombear o sangue, falseando, por vezes, entre tosses, rouquidões e alguma indisposição coronariana.
Portanto, se a metodologia disciplinar ensina que cada ciclo folclórico tem cerca de quarenta anos, o nosso OPERÁRIO DAS LETRAS E DAS ARTES já está imolado para a história de uma cidade que ainda tem um perfil provinciano.
Para algumas pessoas que nem o conhecem, e que a popularidade leva a elas currículo e forma, ele é mais do que um homem comum. É o semelhante mitificado, mas que não perdeu a aura dos homens do povo
Materialmente pobre, caminha curvado de tanto carregar maletas de papéis durante mais de quarenta anos.
Como convém a alguém que se faz entrega sinceramente e perpassa aos outros estes valores, o amor materializado tem um nome próprio, peculiar, inusitado: CASA DO POETA RIOGRANDENSE, a musa balzaquiana de 41 primaveras, que reúne, num salão de festas, mais de setenta pares em todas as primeiras terças-feiras de cada mês, na mais importante promoção poético-musical do Estado, o CAFEZINHO POÉTICO.
Tão espiritual é a obra que LUPICÍNIO RODRIGUES, memória viva da dor-de-cotovelo, através de seu filho de mesmo prenome, é o anfitrião no Bar Restaurante Temático SE ACASO VOCÊ CHEGASSE, ali na Venâncio Aires, 866, perto da Redenção, uma das artérias boêmias de Porto Alegre.
Dizem que há pessoas baixadas que fogem do Pronto Socorro Municipal e do Hospital de Clínicas – os dois localizados ali pertinho –, só pra cantar e dizer versos naquelas endiabradas primeiras terças-feiras de cada mês!
Tem vivente que sai da festa dos poetas tão emocionado, com perigo de morte, que vai direto pro HPS, de ambulância, mesmo assim vai dizendo versos, morrendo de amor pela humanidade! E vivendo também por ela!
Pois bem! Quem criou este estado de coisas, este estado de poesia, de poeticidade meio grávida (pode?) foi o mitificado Nelson, hoje com 70 anos.
Desde 02 de setembro de 1964 as vozes dos poetas, cantores, músicos, teatreiros, radialistas – nem sempre canoras, por óbvias razões – nunca mais se calaram no bem-amado Porto dos Casais.
E o operário das letras e das artes foi ungindo cabeças com o desejado néctar, embriagando de claves-de-sol centenas de vozes nunca dantes reveladas. A todos um único qualificativo: — Meu irmãozinho!
Por dezenas de vezes fomos às praças, nas vilas da periferia, em conjunto com a Federação de Amigos de Bairros – FRACAB, para cantar o amor à Liberdade em tempos de chumbo, onde falar era pecado mortal.
Afinal, era o “Ame-o ou deixe-o!”, expressão gerada no seio do movimento militar de 1964 – e divulgada pelos democratas – para informar ao país que só eram bem-vindos aos palcos da vida e do poder aqueles que dobravam a espinha a então política ditatorial.
E a falta de Liberdade, de democracia, de luz no fim do túnel, produziu o Movimento Espaço Poesia, traduzido num pequeno grupo de poetas libertários, cuja função era dizer versos na Praça da Redenção, aos domingos, pela manhã, onde o mote assim se traduzia: POESIA COMO INSTRUMENTO DE JUSTIÇA SOCIAL
Fachinelli, profundamente lírico, só cantava o amor, nada da chamada poesia social em sua boca. Nos jardins líricos da madrugada só havia flores. Nem a exposição aos ventos fortes ele se permitia.
O dirigente tinha consciência de que, acaso houvesse qualquer descuido, se poderia ter o fechamento da Casa do Poeta e a suspensão do Cafezinho Poético. Esta conduta permitiu que CAPORI atravessasse tais anos até a Constituição – Cidadã, de 1988.
Nelson jamais revelou qual a sua grei partidária, jamais disse em quem votava. Sei, que no fundo, ele era getulista. Admirava o estadista de sua geração. Sua prática política tinha muito do Pai dos Pobres, alcunha política de Getúlio Vargas. Também ele era o populista da cultura, o protetor dos descamisados da Poesia!
E o idealismo ferrenho do ativista “cardíaco das estrelas”, como disse Fernando Pessoa, em “Tabacaria”, produziu a POEBRAS (Casa do Poeta Brasileiro) e a CAPOLAT (Casa do Poeta Latino-Americano)
O ativista cultural antevia a felicidade brasileira e a latino-americana através da Poesia, sua única visão de mundo. Designou comissões de instalação, nomeou coordenadores, delegados, embaixadores culturais, instalou sedes, fez viagens ao Uruguai, Argentina, Paraguai, sempre na intenção de que a poesia fosse a fada-madrinha da unidade sul-americana. Antevia o MERCOSUL na área da Cultura.
Tudo isto em mais de quarenta anos de sonhos e incompreensões. E muito dinheiro saído de seu próprio bolso. Enfim, o que é dinheiro para um assalariado público, oficial de justiça aposentado da Justiça do Trabalho? Que o diga Lenita, a musa do poeta-formiguinha. Para o seu desespero, há décadas, sempre havia necessidades por suprir.
Mas a Poesia estava acima de tudo. O Poeta-Maior dava forças a Fachinelli para prosseguir a jornada de evangelização em nome do que acreditava. Bem, hoje são 57 Casas de Poetas distribuídas em 13 Estados-Membros da Federação Brasileira e eu exerço a coordenação delas, desde o Congresso Brasileiro de Poesia de 2003. Aprendi com Fachinelli. Ajudo, com afinco, a carregar o estandarte.
Para Stanley Kunitz, consultor de Poesia do Congresso dos Estados Unidos da América, em 1977, “o artista é, em boa medida,o doente e o médico de si próprio”.
Nelson Fachinelli, o moço pobre do Bairro do Menino Deus, descobriu muito cedo que poderia ser o médico de todos que o procurassem, para, assim, abrandar a sua exclusiva loucura de reconstrução espiritual do mundo. Bendita loucura!
Joaquim Moncks