As Vinhas de Davina
Irmã Davina surgiu em minha vida em hora de ira com Deus, num momento de desamparo desamparado, onde não havia uma só pedra para chutar no caminho. "Tempo de escuridão escura", diria vó Vitalina se fosse viva e não estivesse tão ocupada no céu. "Tempo de escuridão clara", Davina me disse do alto de uma escada de quatro degraus. Escada de hospital, sem flores ladeando o corrimão nem fachos de luz nem auréola. Escada de hospital, com cheiro de éter e clorofórmio.
Paisagem pouco provável a qualquer aparição santíssima, talvez eu e você disséssemos, esbarrando trôpegos na procissão de enfermeiras. Mas para Irmã Davina, do alto dos seus mais ou menos um metro e cinquenta, o milagre estava logo ali, "bem defronte das fuças", como bem diria minha bisavó Luiza, se fosse viva e não estivesse tão ocupada com os remendos do manto da Virgem. Bojudo, aureolado, debruado pelas asas alvíssimas dos degraus de mármore, lá estava o milagre, vestido como uma freira de mais ou menos um metro e cinqüenta de altura.
E antes que eu tivesse tempo de me ajoelhar e pedir perdão por pecados cometidos e a cometer, Irmã Davina, a santíssima de mais ou menos um metro e cinqüenta de altura, como um bólido, um foguete de São João, sacou de um bolsinho uma imagem de Nossa Senhora das Graças. Dourada, reluzente em tarde de sol tão escura, a graça de das Graças se fez plena como o sol que insistia em girar nas mãos dos anjos como uma bola. Eu, que não encontrava saída para o labirinto escuro que meu pai cismara em explorar, naquele momento tive a certeza que as viñas de Davina desabrochariam em cachos...
Hoje, ao retornar da Casa de São Francisco de Paulo, lar de Irmã Davina e de suas Irmãs, aperto a graça de das Graças que no momento certo acolheu meu pai, dando-lhe um milagre de mais ou menos um metro e meio de altura, que incansável o guia por um escuro labirinto chamado Alzheimer. Um labirinto nem sempre muito fácil de ser percorrido, entremeado por períodos de lucidez e loucura, mas que as mãos firmes e delicadas das irmãs, Davina, Zenóbia, Francisca, e outras que ainda não conheço o nome, conduzem com sabedoria e fé. Lá, como ele, existem outros no mesmo labirinto, amparados igualmente por Nossa Senhora, Davina e suas irmãs, Rosa, a doutora de Deus, enfermeiras, cuidadores e São Francisco de Paulo.
Obrigada, irmãs que tão bem guardam meu pai!
Marcia Frazão