Retrato de Família

    O que ficou na mente foi uma fotografia com toda a família, num amplo jardim que, no ano seguinte ao da foto, o governo de Carlos Lacerda se encarregaria de destruir para dar passagem ao progresso. Estávamos na década de sessenta. Para crianças, tudo é festa. Eu e mais alguns primos, fazendo poses para a câmera, marcamos a nosso modo, a imagem que ficou para a posteridade.

    Tia Janete, ainda grávida de uma prima, abraçada ao tio Beto. Ele, já de fogo na pose, era alcoólatra quase inato e começara a fumar aos oito anos de idade. Ela, irmã da minha mãe, gostava de bailes e da vida noturna. Tia Janete morreu em 1970, aos quarenta e dois anos e tio Beto em 1976, também antes de chegar aos cinqüenta.

    Outro casal da foto era tia Hilda e tio Rosalvo. Ela, também irmã da minha mãe, talvez a mais equilibrada das filhas, fumava Continental sem filtro como quem bebe água no verão de quarenta graus do Rio de Janeiro. Ele era baiano e ex-combatente da Força Expedicionária Brasileira, que foi à Itália na Segunda Grande Guerra. Voltou tuberculoso da guerra e teve muita sorte, pois a penicilina começou a ser comercializada quando já estava na fase terminal da doença e, por isto, conseguiu se salvar. Tia Hilda morreu em 1974, aos 48 anos. Tio Rosalvo foi morar em São Paulo e fiquei sabendo por um parente que ele havia falecido em 1996.

    Meu pai e minha mãe eram o terceiro casal. Casaram-se em 1941. Dizem que minha mãe casou-se sem saber que uma das “obrigações” do casamento é o sexo e, dessa maneira, traumatizou-se ao ver meu pai querendo ir às vias de fato na noite de núpcias. Pouco se falava de sexo nas famílias burguesas tradicionais daquela época, mas para resolver aquela situação não houve outra saída senão uma conversa de conscientização entre ela e minha avó. Depois disso, o sexo deslanchou e acabamos sendo quatro irmãos. Minha mãe morreu em 1983, aos sessenta e cinco anos, e meu pai, que muito viveu e soube como aproveitar o melhor da vida, morreu aos oitenta e sete anos, em 2002.

    Meu avô materno morreu onze anos antes de eu nascer, mas minha avó fazia-se presente na foto, cheia de saúde, conversando com uma comadre que não me recordo o nome. Foi minha vizinha por mais de vinte anos. Para as poucas oportunidades que teve, depois do falecimento do marido, até que se saiu muito bem. Viveu até os oitenta e nove anos e morreu, em 1986, devido a uma queda na sala de sua casa, que a levou a ter hemorragia interna e, logo depois, embolia pulmonar.

    O único filho homem dos irmãos da minha mãe era o tio Elias, que também se fazia presente na foto. A herança vinda dos meus avós foi torrada por ele em aventuras e desventuras mais tarde duramente criticadas pela família. Vendeu terras, casas e lojas e, até pouco antes de morrer, alegava que grande parte da pequena fortuna herdada acabou sendo utilizada para o casamento das irmãs. Realmente, os que viram dizem que foram casamentos suntuosos, mas, daí a significarem a perda de vários patrimônios, ficou meio sem sentido. Tio Elias foi dono de uma fábrica de tecidos e teve uma vida confortável até fins da década de setenta. No final, como “bom” gestor de patrimônios que era, foi à falência e passou a viver do parco dinheiro da aposentadoria que conseguiu com muito custo. No ano 2000, diante de uma tragédia familiar iminente, pegou um atalho e morreu aos setenta e sete anos, ainda com boa saúde.

    Tio Paulo e tia Jeni eram o outro casal patético da foto. Ele, um tremendo garanhão, que se aposentou na Aeronáutica aos quarenta e dois anos. Ela, uma vítima não só da moral e dos bons costumes da época, mas também de uma doença endêmica que a levou, ainda jovem, a ficar sem o movimento peristáltico do esôfago. Logo depois daquela foto, fez uma cirurgia para ver se conseguia facilitar a entrada da alimentação pelo aparelho digestivo. A cirurgia não foi bem sucedida e ela ficou com seqüelas para o resto da vida, associando-se a isto uma mega hipocondria que a fazia gemer de dor na frente de qualquer estranho que lhe aparecesse e a tomar qualquer tipo de remédios e infusões que lhe receitassem. Depois dessa cirurgia, acho que a vida conjugal desses meus tios ficou nula e, talvez por isto, não fosse tão difícil vê-lo com outras mulheres a tira-colo nas ruas do bairro em que morava. Tia Jeni ainda viveu muito além das expectativas e morreu com mais de setenta anos, em 1994. Tio Paulo, a última vez que o vi, eu estava num ponto de ônibus, contente com a campanha de divulgação do meu primeiro livro editado, quando passou no seu carro, olhando-me rapidamente e dando a nítida impressão de que não estava bem. De fato, seis meses depois, foi internado no hospital da Aeronáutica, onde veio a falecer, em 1997.

    De todos presentes naquela fotografia, tirada em meados da década de sessenta, somente os da minha geração continuam vivos. O local ajardinado, que o governo Carlos Lacerda mandou destruir, atualmente está sendo reconstituído, graças a um projeto de reurbanização que, hoje, atinge esse bairro do Rio de Janeiro em que vivi. A memória dos que se foram, com certeza, ainda está preservada entre seus filhos, sobrinhos e poucos amigos ainda vivos que com eles conviveram. Nem sei se existe alguém, além de mim, que se lembra daquela fotografia de família, mas isso não é relevante. Com certeza, outras fotografias e filmes caseiros já foram feitos para que sirvam à saudade particular de cada um nas próximas décadas.

Felipe Cerquize

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