PEDOMUTUCA E DOMARIA: CASEIROS DA FAMÍLIA RICARDO ALMEIDA

Domaria não mais caminhava, só patinava. Os pés cheios de calos. Toda encurvada. Tok-tou-truk-trupizupi. O saco de pecado, nas costas, ela jurava por meu padrinho de tê-los deixado no Juazeiro. Caminhando quase de quatro pés. Mesmo assim, carregada de pacotes que seriam os presentes dos vizinhos, dos filhos, das noras, dos netos e dos bisnetos. E, na mente, as aventuras de seu passeio turístico que jamais iria esquecê-lo. Não se prive de um dia feliz , falava: isso é que é felicidade!

A religiosidade nordestina é tão palpitante que chega a se identificar com a canção do músico paraibano Herbert Vianna:

A arte de viver da fé
Só não se sabe fé em quê

Novembro, mês de romaria aos devotos do padre Cícero Romão Batista, na cidade de Juazeiro, CE. Domaria e Pedomutuca, caseiros da família Ricardo Almeida, trabalhavam com idéia fixa: juntar dinheiro e, nas últimas horas do ano, cumprir sua obrigação religiosa: viajar em pau-de-arara.

Dias seguidos. Noites. Poeira. Tapiocas. Água benta. Águas barrentas, salobras. Caatinga. Bode assado, uma delícia. Até a cidade de Juazeiro para visitar o túmulo do Pe. Cícero, no Dia de Finados.

Em uma dessas viagens, Domaria, mulher em avançada idade, de vários filhos, netos e bisnetos - lucidez invejável -, fora surpreendida pelas brincadeiras do destino. Era uma baixinha, magra, cheia de energia, um rosto marroquino riscado de vincas. Rumou ao Juazeiro no lotação pau-de-arara. Repleto de moças, rapazes, velhos, crianças. Muita música das vozes no pau-de-arara. O caminhão em uma velocidade que sumia encoberto em nuvens de poeira.

Não foi muito longe o carro dos romeiros. Estradas mal conservadas interrompiam a viagem com buracos; o caminhão saía de um buraco, tinham outros lhe esperando. Crianças na rodagem pediam esmolas com pás e enxadas, repunham barro nos buracos; atrás, outras crianças cavavam: era o ganha-pão daquelas famílias à margem, que se alimentavam de moedas. Um motorista jogava, outro não. Com um choque em uma das crateras, tok-tou-truk-trupizupi, quebrou o diferencial, parando o caminhão, definitivamente, na estrada. A noite vinha se aproximando com suas cores. Todos desceram. Impacientes. O motorista praguejava. Um mosquito que falava embaixo de um chapéu de couro. Como pernoitar em um lugar daqueles? O Mosquito avisou: Não sei quanto tempo permaneceremos, aqui, até que conserte meu caminhão. Cada um dos romeiros procurou abrigo ao seu modo.

Domaria, cansada, tonta no meio da tulha. Aquele solavanco da viagem - tok-tou-truk-trupizupi tok-tou-truk-trupizupi tok-tou-truk-trupizupi - quase a derrubou. Desceu bamba. Sem saber onde estava. Tok-tou-truk-trupizupi. Perdeu a dentadura de um tanjo. O lenço colorido na cabeça o vento lhe roubou. Depenada. Domaria desistiu de perseguir o lenço que o vento levava: O meu padrinho me dá outro! Gritou no meio da poeira. Sentou a mão na cara para matar um mosquito. Abancou-se em uma pedra quente. Levantara-se de um pulo. Olhou o mato. Lavou a cara com as mãos; queria afugentar um pouco o cansaço. Tok-tou-truk-trupizupi: não deixava sua cabeça de avó e de bisavó aquele barulho do caminhão que ficou no buraco. Domaria, mulher de Pedomutuca, desgarrou-se dos companheiros de viagem e se foi em buscar de abrigo onde pernoitar. De um triz, tudo ficou breu. Um não enxergava quase o outro. Não sei quanto tempo Domaria demorou a encontrar a calçada de uma casa em um povoado ali próximo. Dormiu. Acordou-se com um sol alto que lavava suas rugas de terra rachada de Sol. Uma voz de bêbado a lhe chacoalhar: Véia, ó veia, acorde; véia! A senhora tá dormindo na porta do caiboré, véia! Véia; oh, véia!

Foi um alívio ao espírito de Pedomutuca reencontrar, manhã cedo, Domaria que passou a noite no cabaré. Pedomutuca, afro descendente pés-de-valsa e exímio cantador de reisado: folclore de grande apreço; vaqueiro da família Ricardo Almeida, conhecedor dos plantios de roças de feijão, milho e algodão, tirador de leite; liderava a tropa durante as exposições de gado: invenção de Zezito Almeida, fazendeiro que implantou a cultura do gado puro de origem na região. Zezito Almeida, o proprietário da Fazenda Gravatá, criador de gado que conquistou vários prêmios por melhorar a qualidade da raça bovina na região.

O caminhão consertado, todos prontos. Seguira viagem à romaria. Os romeiros, novamente, felizes cantam seus louvores ao padrinho Pe. Cícero:

Oh que estrada tão comprida
Oh que légua tão tirana

Ao embalo de hinos religiosos, na velocidade do transporte, todos rindo, com a certeza de que voltariam perdoados dos pecados; não sabiam eles que quem deveria se preocupar em receber o perdão dos pecados seria a política dos desiguais. A política da desigualdade que tanto oprimia o povo. Desigualdade que lhes obrigavam a viver uma vida desumana.

Finalmente, as luzes da cidade de Juazeiro. Quanta surpresa. Difícil foi conseguir se encaixar no meio daquela multidão onde não cabia mais ninguém. Tok-tou-truk-trupizupi. Contudo, com o poder do padrinho Pe. Cícero, sempre cabe mais um romeiro.

Domaria e Pedomutuca dirigiram-se ao rancho de hospedagem, uma espécie de pousada. Comeram carne assada, beberam suco de caju gelado e um café com tapioca no coco, um prato de mungunzá, umas colheres de cuscuz, umas pamonhas. Tomaram banho. Passaram a noite à espera do amanhecer. Quando outra vez veio o Sol, Pedomutuca e Domaria, foram à igreja assistir a missa. Depois, eles visitaram o museu para ver a cama onde meu padrinho Pe. Cícero dormia.

Mais tarde, Domaria e Pedomutuca subiram milhares de degraus até o pé da estátua do padrinho. Ali, ouviram violeiros catarem versos exaltando o padre. Compraram lembranças, com o dinheiro que juntou durante o ano, na roça, sol a pino na cabeça nua. Aquela era a época deles levarem presentes aos seus vizinhos, filhos, noras, netos, bisnetos. Tok-tou-truk-trupizupi. De chapéu de palha, tiraram retratos na cidade, compraram mel de rapadura, óleo de piqui para a cura de todas as enfermidades, folhas do pé de juazeiro iam guardá-las no Adoremos e rezar toda sexta-feira; aquelas folhas garantiam a salvação eterna e, na Terra, era sinal de saúde e prosperidade. Domaria, tão cansada, não podia mais caminhar. Duas bolhas gigantes nos pés. O semblante da romeira não era o mesmo. Imaginando onde adquirir forças e subir outra vez no pau-de-arara de volta a terra de Zezito Almeida. Piolonga. Só aumentavam as bolhas nos pés.

Muitos outros pertences milagrosos do padrinho Pe. Cícero Romão Batista, Domaria e Pedomutuca trouxeram do Juazeiro; antes, os velhos beijaram e se ajoelharam diante deles. Mas, estavam de volta. Iam para casa. Três dias de viagem. Durante o retorno da romaria, com o dinheiro minguado, quase não houve condições de se alimentarem os romeiros até a fazenda onde trabalhava para a família Ricardo Almeida. Seu marido, Pedomutuca, afoito, desceu do caminhão e saiu rumo à roça onde morava. Domaria era o retrato do cansaço. Desfigurada. Ele na frente dela, todo entusiasmado; ela gemendo atrás do marido: umas 50 braças; olhava o chão, olhava o céu e pedia, num murmúrio, mordendo os lábios: “Ai! Chega Domaria, ai!, chega logo na roça. Ai!” Tentava acompanhar seu marido, Pedomutuca, entretanto, não conseguia vencer a distância de muitos metros. Sete léguas da cidade até à roça. Domaria não mais caminhava, só patinava. Os pés cheios de calos. Toda encurvada. Tok-tou-truk-trupizupi. O saco de pecado, nas costas, ela jurava por meu padrinho de tê-los deixado no Juazeiro. Caminhando quase de quatro pés. Olhava o céu, ai!, olhava o chão. Ai! Mesmo assim, carregada de pacotes que seriam os presentes dos vizinhos, dos filhos, das noras, dos netos e dos bisnetos. E, na mente, as aventuras de seu passeio turístico que jamais iria esquecê-lo. Não se prive de um dia feliz, falava: isso é que é felicidade!

Maria do Socorro Farias Ricardo

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