SABATINA  PERNÓSTICA

Não dá para acreditar no provincianismo de uma urbe como São Paulo, que apesar de estar catalogada como uma das cinco maiores do mundo em população, é extremadamente arcaica, discriminadora e paroquial.

Lendo um guia turistico Fodor em NYC, eu ingenuamente acreditei que fosse verdade, que por ter uma enorme pupulação de orígem italiana, japonesa, chinesa, e européia variada, o nível cultural e de requinte fosse semelhante àquele da sublime Manhattan. Ledo engano. Só com o tempo descubri que esses estrangeiros aportados aqui há um século ou mais, eram todas gentes rudes da roça ou sem profissão e que nada tinham de eruditos nem sequer de urbanos ou escolarizados. Pior ainda. Os seus descendentes ainda hoje são muitas vezes semi-letrados, incultos, difícilmente lem um jornal (livros, nem pensar)  e menos ainda estão interessados em idéias, intelectualidade ou atividades mentais universais.

A primeira pergunta do brasileiro, ao encontrar um estrangeiro pela primeira vez, seja numa remota aldeia do Acre, do Pará, ou   da Amazônia, é: "donde vc. é?", assim a queima-roupa, ou como alternativa para ser menos violento e atrevido; "o senhor não é brasileiro", invariavelmente com um tom acusador de que o cidadão em questão "não é qualificado", ou algo assim. O sujeito sente-se rejeitado de entrada ou como se estivesse sofrendo um interrogatório policial desses típicos de ditaduras. Este vício excecrável visa desqualificar o interlocutor automaticamente, rotulando-o ou encaixando-o em alguma categoria para colocar-se acima dele.

No meu caso, ao dizer que sou estudioso e professor de idiomas o meu algoz responde cheio de empáfia: "ah, é poliglota, eh?" — e começa a me desafiar  com o seu inglês, ou francês, ou seja lá o que for que ele saiba, exigindo que eu enumere quantas línguas falo e que recite o meu curriculum completo  sem se importar ou perceber a inconveniência desta  sua atitude destemperada.

E não é que o brasileiro tenha uma autêntica curiosidade infantil de conhecimento, mas simples e vulgar bisbilhotice. Em resumo, esta sabatina é o equivalente perfeito de um assalto a mão armada, pois nos países civilizados ninguêm está disposto a perguntar ou a contar intimidades a desconhecidos. Tal atitude incivil e grosseira não é comum lá fora, mesmo se por essas bandas também exista uma sadia curiosidade sobre uma pessoa desconhecida, mas nunca com tal veemência e despudor.

Como resposta cínica e desbragada às vezes eu respondo que nasci na ilha de Malta a bordo de um navio filipino e a proverbial ignorância  geográfica do povão fica sem jeito e propriamente a ver navios,  e muda de assunto.

O clichê atribuído ao respeitado escritor brasileiro Sérgio Buarque de Holanda, referênte ao "homem cordial" que tipificaria o brasileiro médio, cai por terra. De fato, ter sotaque estrangeiro no Brasil, geralmente é uma vantagem para ser paparicado pelos nativos, mas sempre com a intenção velada ou escancarada de levar vantagem sobre o recem chegado. O brasileiro  parece assumir automaticamente que todo estrangeiro é rico e se está aqui é porque tem montes de grana para esbanjar e talvez compartilhar com ele. Mas se o dito estranho for de orígem Latino-americana, o sotaque espanhol é realmente um anátema, então a pergunta do começo ja pode tornar-se até agressiva, como se o brasileiro quisesse dizer nas entrelinhas: "o que você está fazendo aqui no meu país".

Para estes desavisados provincianos é bom lembrar que desde os primordios do homem na terra, todos os países do mundo foram enriquecidos pelas trocas culturais e que sem os estrangeiros a nossa humanidade seria ainda mais pobre. É por isso que as invenções viajam através do tempo e do espaço e quando usamos os numeros não nos importa se foram descubertos e transmitidos por gregos, indianos,  árabes ou romanos, o quando usamos o nosso alfabeto lembramos que foram fenícios, hebreus, gregos e romanos quem os refinou e transmitiude geração em geração até o presente.

Mas para não botar o dedo na ferida e deixar tudo como estava, vamos sugerir um ótimo remédio. Trata-se de recomendar um livro luminoso da autoria de Luis da Câmara Cascudo, o meu brasileiro favorito como homem cosmopolita e professor erudito sem nunca ser pernóstico.

Dos seus mais de 170 títulos, Cultura e Civilização é um verdadeiro cabedal de sabedoria. Analisa e explica as grandes descobertas da humanidade desde a era de pedra até nossos dias com ênfase no Brasil: Antropologia, genealogias, folclore, religião, sociologia, lingüistica, festas populares, e estudos comparativos gerais são apresentados com uma farta bibliografia de dar água na boca para os amantes dos livros e do saber e para incutir nos iniciantes o amor à leitura e aos conhecimentos milenares transmitidos por todos os povos desde a mais remota antigüidade.

Para encerrar uma longa peroração, eu gosto de responder à inconveniente pergunta tal como o fez o brilhante Oscar Wilde ao chegar ao porto de New York há mais de um século. Perguntado: "o que o sr. tem a declarar", ele, ríspido e lampeiro, rebateu: "só tenho a minha genialidade a declarar".

Cesare Giraldo

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