Cultura Zero
Ao me olhar no espelho, enquanto escovava os dentes e matutava como cobrir o furo da conta no banco, me dei conta de que faço parte de uma classe tão desvalida quanto a dos desvalidos. Num jorro de água a ficha caiu: o beco da cultura não fica a dever nada ao beco da miséria!
Enquanto caçava cáries no fundo da boca, morrendo de medo de me deparar com uma e ficar banguela por não ter grana para ir ao dentista (no beco da cultura, plano de saúde é apenas mais uma discussão teórica), espichei a memória e contei os mortos e feridos dessa classe que tem a estranha mania de sublimar a tristeza e transmutá-la em beleza. Lembrei-me das dores e dos padecimentos financeiros de Freud e um frio me percorreu a espinha: o pai da psicanálise era um masoquista! Se não fosse, não queimaria as pestanas em pesquisas que mal davam para pagar o aluguel da casa.
Depois de ter constatado que um dos maiores baluartes da cultura praticamente viveu a vida toda de favor, o frio da espinha tornou-se gelo quando olhei para os lados e percebi que os tempos eram outros: já não existem ricos amantes das belas artes e os emergentes não financiam a cultura e se lixam para ela!
A esta altura, o furo da conta se tornou um buraco. Uma cratera cheia de dentes numerados, à espera de mais um funeral. Pensei em cortar os pulsos, mas rapidamente me lembrei das palavras de Dorothy Parker (outra que penou bons bocados) que sabiamente apontou a sujeira que tais suicídios costumam deixar nos tapetes. Bem verdade que não tenho nenhum tapete, mas desisti só de pensar na possibilidade de escapar e depois ter que limpar tudo (mancha de sangue dá uma trabalheira!).
Com o último dente escovado e aliviada por não ter encontrado nenhuma cárie, esqueci da buraqueira na conta bancária, dos insensatos planos de suicídio e tomei uma decisão digna do masoquismo do beco da cultura: comecei a escrever um livro! Uma decisão que dá de mil em qualquer modalidade de suicídio.
Marcia Frazão