Raul Seixas em meu Consultório

Meu paciente, dos Anos 90, adolescente, bonito e doce, com o rótulo de agressivo, mau estudante e tudo mais que o desabonasse, chegava no consultório e tentava, ao máximo, chocar-me:por exemplo, convidava-me para fumar maconha. Sentava-se no chão. Dizia todos os palavrões e gírias para contar seu relacionamento difícil (difícil mesmo) familiar. Eu ficava impassível, para que ele ganhasse espaço. "Se você vai fumar, vou sair um pouco, dizia-lhe. Aqui não é lugar para você puxar fumo". Ou: saia e volte depois... Olhava-me espantado. Onde estavam os sermões, os conselhos sobre drogadicção? Mais tarde, conversaríamos muito muito sobre o assunto. Sobre os perigos do transporte da erva. Vi que ele gostava de Leis. Expliquei-lhe que não havia diferença entre e usuário e traficante para a polícia, porque se você está andando para lá e para cá com o bagulho, é uma forma de tráfico/tráfego. Gosto muito de histórias como parábolas. Conto-lhe de outros jovens que penaram em cadeias, por exemplo em Barbacena. Sem dizer o nome, claro. E a história sendo introduzida, naturalmente, em outro contexto. Desarma e interessa.
Se o psicólogo fizer o mesmo que os demais adultos fazem, perde a pessoa em formação. Ela quer um ouvido amigo. Muitas vezes, colo. Mas enredos de vida sempre interessam. O raciocínio fecha as gestalts. Ajuda a preparar terreno para os limites. E é sempre bom lembrar que ensinar limites não é impor limitações...
Com a namorada da hora, ia para o Parque das Mangabeiras, fumar o bagulho com a namorada. Ele acreditou apenas quando foi preso. Voltava de São Tomé das Letras com os amigos, quando o carro foi parado e o porta-malas revistado .A erva, um amigo comprara lá e ele não sabia que lá estava, na mochila do outro. A essas alturas acreditei, pois ele já estava num estágio tranqüilo: menos cerveja, maior controle. A mãe pagou , na época, 500,00 para que não passasse a noite preso. Então, ele acreditou que ela o amava.
Nas estratégias de avanços e recuos, para mostrar o quanto a mãe não o compreendia, passou uma sessão falando-me do Maluco Beleza, morto em 1989. Possuía um Cd clandestino (em sua casa). A mãe achava que Raul Seixas seria um influência ruim.
Na sessão seguinte, traz-me o livro do Raul. Deixa-o emprestado comigo. Fica encantado quando digo que tive um igual e que emprestei, queria reler.
Nos dávamos muito bem, eu gostava da pessoa sensível e sofredora que ele era. Sabia que seu potencial de caráter era muito bom.
Ele, sem pai (a mãe ficou viúva grávida dele), identifica-se com o cantor, que também não gostava de estudar. Os pais, geralmente, não dão muita impoetância aos conflitos dos adolescentes, mas quando há problemas na escola, são chamados pelo colégio e correm para o psicólogo. A mãe dele, no entanto, o amava profundamente, mas estava estudando e trabalhava, tendo pouco tempo para o rapazinho. Os tios o maltratavam.pelo menos, ele assim os percebia, como castradores. Um chegou a escarrar dentro de sua boca.
A psicoterapia começou a rolar em torno do livro e da vida de Seixas... Conto-lhe que em 1978 Raul tevede se internar, para tratar sua pancratite, que o alcoolismo estava lhe prejudicando a carreira. O cantor, já morto (tão vivo!) era presença ali no consultório. Análise daqui e dali, o certo é que, à época do vestibular, centrado e tranqüilo, passou, fez Direito, hoje é advogado.
Quando teve alta, já que não escondia mais o bagulho na sola do tênis, inconscientemente, querendo que a empregada achasse e contasse à mãe viúva, e não bebia mais desbragadamente. Ddevolvi-lhe o livro e o CD.
Nestes quinze anos da ida de Raul Seixas desta Terra, conto esse caso clínico, decodificadas as nuances científicas e sem entrar na análise propriamente dita, apenas qual curiosidade: Raul Seixas, redivivo, um co-terapeuta, dentro de uma psicoterapia de apoio...

Quem viveu nos Anos 60, 70 e 80, pode traçar os elos que explicam porque Raul não é esquecido e foi tão amado. Sua arma era a palavra, o som, as atitudes. Representava milhares de jovens brasileiros.Livre, a liberdade uma conquista natural. Mesmo assim, foi para o exílio em 74, sem bagagem, expulso do Brasil, escoltado até o aeroporto.
Em 1986, Luisa de Oliveira fez com Raul memorável entrevista (*), e, respondendo-lhe como foi a experiência de ser preso em 1974, ele conta:

"Até hoje não sei realmente qual foi o motivo. Mas veio uma ordem de prisão do I Exército e me detiveram no Aterro do Flamengo. Me levaram para um lugar que eu não sei onde era... tinha uns cinco sujeitos... bom. Eu estava... imagine a situação... Eu estava nu, com uma carapuça preta que eles me colocaram. E veio de lá mil barbaridades: choque em lugares delicados... tudo para eu poder dizer os nomes das pessoas que faziam parte da Sociedade Alternativa, que, segundo eles, era um movimento revolucinário contra o governo. O que não era. Era uma coisa mais espiritual... eu preferia dizer que tinha um pacto com o demônio a dizer que tinha parte com a revolução. Então foi por isso que me escoltaram até o aeroporto..."

Na época, motivos reais e palpáveis não eram necessários. Ser poeta, compositor, artista, intelectual e, portanto, formador de opiniões, de per si, já um risco. Nessa épocas (anos 60/70, fui repórter em Juiz de Fora e sei bem como era toda essa incoerência) às vezes o mais careta, o mais neutro, era preso e torturado. Muitos líderes, da resitência, atravessaram os Anos de Chumbo camuflados.Mas muitos viveram na clandestinadade ("e pelas praças não terá nome"...). Tudo era proibido, especialmente... dizer e pensar. O que mais fez o "Maluco Beleza"; foi dizer. E ser. Essas foram e ainda são as suas armas

Clevane Pessoa de Araújo Lopes
Belo Horizonte/MG, 16/09/2006

(*) Fonte do trecho da entrevista:http://www.jayvaquer.com/raul/index2.html

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