Nunca me interessei pelas aulas de literatura. Sempre achei que aqueles escritores retratavam coisas que eu não podia compreender. Aos 12 anos, fui obrigado a ler Vidas Secas. Que suplício! Fome, seca, nordeste. Minha imaginação não ia além das imagens retratadas pelo telejornal. Como fazer uma análise de uma realidade que eu não conhecia? Não que eu não tivesse ouvido falar. Como disse, via pelos jornais, mas memória sensitiva eu não tinha. Fome para mim era ter que esperar meu pai chegar do trabalho para a família almoçar unida. Sede era o que eu sentia depois das aulas de educação física. E pobreza? Ah, essa eu sabia bem.
O estacionamento do colégio em que estudei tinha dois portões distintos, um de entrada e outro de saída. Nos horários de pico, os pais iam pegar seus filhos, entravam pelo primeiro portão, faziam um “U” e saíam pelo outro. Este pequeno trecho durava não menos de meia hora, devido ao grande fluxo de carros no horário. Havia bancos, árvores e uma área coberta no mesmo espaço do estacionamento e era nesses locais que os alunos se acomodavam para esperar seus pais. Boa parte da elite da cidade estudava lá e havia, por isso, um desfile de carrões, em que não só os pais se exibiam para os outros pais, como os alunos se exibiam para os colegas.
Eu costumava esperar uns dez ou vinte minutos pela chegada de minha mãe, o que não era muito, devido ao grande engarrafamento que se formava nas proximidades da escola. Ela, coitada, demorava mais que isso só para chegar à rua da escola. Como minha família só possuía um carro, minha mãe me deixava na escola e meu pai no trabalho pela manhã e ficava com o carro o resto do dia. Depois, buscava-me no fim das aulas, almoçava comigo e com meu pai em casa e voltava ao trabalho, só retornando à noite. A gente também não morava muito perto da escola, mas aquela era uma escola renomada, com professores exclusivos e educação religiosa. Meu pai ateu e minha mãe católica não-praticante acreditavam que a religião poderia servir de freio aos impulsos rebeldes da juventude. A educação, segundo eles, era o melhor que poderiam me dar.
Voltando ao estacionamento. Certa vez, minha mãe chegou mais cedo que o habitual. Quando reconheci nosso carro – um monza velho e cinza, cheio de arranjos nos pontos de ferrugem – fiquei extasiada. Naquele dia, almoçaria mais cedo. Mas ao notar o semblante impaciente e irritado de minha mãe, vi que algo estava errado. O carro tinha pifado. Nada no mundo fazia-o ligar. Um dos seguranças tentou empurrá-lo pra ver se pegava no tombo. Não pegou. Os minutos que passamos ali pareciam uma eternidade. Todos me olhavam e disfarçavam sorrisinhos. Eu queria ser abduzida e quem sabe não voltar ao colégio pelos próximos dez anos. Essa experiência foi tão traumática, que mal lembro como terminou. Aquilo, para mim, era pobreza.
Aos 14 anos, ganhei de meu pai O Mundo de Sofia. Li todo e ele orgulhava-se disso. Meu pai era professor universitário e seus olhos brilhavam quando comentava com seus amigos intelectuais que sua filha gostava de filosofia. Quem? Eu? Era o que ele dizia, mas ninguém fizesse o favor de me perguntar o que pensava Aristóteles, pois eu não saberia dizer. Quanta cobrança! Eu devia gostar de ler. Mas como?
No ano seguinte, surtei. Surto de sensibilidade. Pensamentos, dúvidas, questões sobre a minha existência me transportavam à infância. Já nesse tempo, não sei bem a idade correta, mas nem sabia ler e escrever ainda, eu me pegava perguntando o porquê de eu ser quem eu era. Por que eu sou eu e não sou fulana? Por que meus pais são esses? Por que eu nasci da barriga de minha mãe e não de outra? Por que eu era do jeito que eu era? Por que eu perdia tanto tempo pensando nessas coisas e todos os meus colegas só se preocupavam com as lições de casa e com o lanche do recreio? Será que todo mundo pensava isso também? Por que eu não ouvia isso dos outros? Por que eu falava o que eu sentia e ninguém entendia? Por quê? Por quê? Todas essas perguntas surgiam acompanhadas de uma sensação parecida com a de um dejà vu , mas não era bem isso. Era como se eu saísse do meu corpo, visse minha vida como quem assiste à novela das oito e critica a atuação dos personagens.
De repente as aulas de literatura começaram a fazer sentido. Aqueles textos já podiam descrever os meus sentimentos, as minhas dúvidas e incertezas. Eu já podia ler sobre tudo o que pensava enquanto fitava o teto antes de dormir. Ufa! Havia outros como eu. E, então, lendo Clarice, me encontrei. Descobri que eu era a personificação de Macabéa. Não exatamente, devo ressaltar. Quando a li, senti um impulso de dizer-lhe a verdade, dizer-lhe da sua existência. Eu queria que me dissessem da minha. E mesmo que parecesse que ela não era capaz de saber que existia, a nenhum ser humano é dado esse privilégio. Descobri, relembrando os devaneios da infância, que, mesmo sem acesso à cultura e às letras, o sentimento de angústia por ser quem se é está presente em todos, ainda que não se possa expressar ou explicar detalhadamente o que esse sentimento causa.
Meu primeiro encontro literário, desses de se sentir retratada no papel, foi com Macabéa. Mas ele não me satisfez. Parti numa busca desenfreada por outros autores que pudessem retratar minhas outras faces, meus desejos mais tímidos e os pensamentos mais vergonhosos. Nesse caminho, cheguei a colher certa maturidade ao perceber que o gosto pela literatura vinha do prazer de identificar experiências próprias em outras vidas. O prazer de sentir-se normal. Com um pouco mais de prática, esse sentimento deixou de ser tão egocêntrico e ampliou-se à compaixão pela dor alheia. Aí entrou novamente Vidas Secas . Aquela dureza não mais me parecia distante. Eu era um pouco de tudo e sentia o peso da vida como se ali estivesse. Aquela seca poderia ser minha. E a procura incessante agora não era mais por respostas sobre quem eu poderia ser, mas sobre como me tornei o que era. O que me fazia digna de não estar no lugar de Sinhá Vitória ? Eu era mais feliz por isso? Ou menos? Por que eu sentia culpa? O que poderia fazer diante daquilo? Muito ou nada. Uma cesta básica não resolveria definitivamente o problema dos Fabianos e suas famílias. Talvez, aliviasse minha culpa e eu ganhasse moral no Reino dos Céus. Tá vendo, Deus, como eu sou boazinha? Como me preocupo com as questões sociais? Eu mereço um lugarzinho aí em cima, não mereço? Mas eu era agnóstica. Não sabia ao certo se havia alguém olhando por mim. E com tanta gente precisando de cuidados no mundo, se houvesse, esse alguém seria muito sacana de olhar justo pra mim.
Da mesma maneira que os livros despertavam em mim novos questionamentos, em vez de solucionar os já existentes, esses pensamentos se perdiam ao longo do dia em meio às informações rotineiras e se transformavam em outros interesses. Minha curiosidade me levava sempre a ramos diversos. Lendo João Ubaldo para o vestibular, meu ponto de convergência centrava-se agora nos tempos da colonização. Memória sensitiva não era mais um pretexto para não gostar de ler. Eu já era uma camaleoa e me adaptava facilmente às estranhas realidades. Indignação e vergonha eram tudo o que eu conhecia nesse momento. Quanta revolta! Passada a raiva, entendi algumas causas para os absurdos culturais que vivemos cotidianamente. Se o pensamento de sempre tirar vantagens dos outros não vinha dali, não poderia explicar porque aqui é assim e não em noutro lugar. Éramos todos filhos de um grande estupro.
Vida universitária, mitologia e filosofia. Uma combinação perfeita. Bastavam alguns comentários em sala de aula e eu já batia na livraria mais próxima na tentativa de satisfazer minha ambição por saber. Eu queria engolir tudo de uma vez. Os gregos são admiráveis e até hoje me pergunto como eles desvendaram tantos mistérios apenas observando.
Mas, com a vida adulta, vem a adequação e o comodismo. Já não era mais tempo de sentir-me capaz de mudar o mundo. Tudo o que poderia querer era desfrutar da vida confortável que eu havia conquistado e ser feliz dessa maneira. Então, diante do surgimento de novas dúvidas, de nem sempre acalmar os nervos com o alívio de ter uma questão solucionada e ainda não ter mais vigor de desvendar os mistérios do mundo e, quem sabe com isso, fazer algo a respeito, mudei de foco.
O legal agora era observar o jogo de palavras. Fascinante é a maneira como alguns autores podem fazer e refazer combinações, brincando com as palavras e me tocando na alma. Algumas de suas frases, faço questão de anotar na parte de dentro do armário. E, ao acordar, pensando no que tinha feito para merecer esse suplício de levantar tão cedo, perco uns minutinhos refletindo sobre essas palavras, que dispostas dessa maneira única, me fazem indagar como não me surgiu essa idéia antes. É o bastante.
Viviane Costa