MINEIRO DIANTE DO MAR

Me lembro dessa cena: um adolescente chegando ao Rio e o irmão lhe prevenindo:"Amanhã vou te apresentar o mar". Isto soava assim: amanhã vou te levar ao outro lado do mundo, amanhã te ofereço a Lua. Amanhã você já não será o mesmo homem.
E a cena continuou: resguardado pelo irmão mais velho, que se assentou no banco do calçadão, o adolescente, ousado e indefeso, caminha na areia para o primeiro encontro com o mar. Ele não pisava na areia. Era um oásis a caminhar. Ele não estava mais em Minas, mas andava num campo de tulipas na Holanda. O mar, a primeira vez, não é um rito que deixe um homem impune. Algo nele vai-se aprofundar.


E o irmão lá atrás, respeitoso, era a sentinela, o sacerdote que deixa o iniciante no limiar do sagrado, sabendo que dali para a frente o outro terá que , sozinho, enfrentar o dragão. E o dragão lá vinha soltando pelas narinas as ondas verdes de verão. E o pequeno cavaleiro, destemido e intimidado, tomou de uma espada ou pedaço de pau qualquer para enfrentar a hidra que ondeava mil cabeças, e convertendo a arma em caneta ou lápis, começou a escrever na areia um texto que não terminará jamais. Que é assim o ato de escrever: mais que um modo de se postar diante do mar, é uma forma de domar as vagas do presente convertendo-o num cristal passado.


Não, não enchi a garrafinha de água salgada para mostrar aos vizinhos tímidos retidos nas montanhas, e fiz mal, porque muitos morreram sem jamais terem visto o mar que eu lhes trazia. Mas levei as conchas, é verdade, que na mesa interior marulhavam lembranças de um luminoso encontro de amor com o mar.


Certa vez um missionário branco pregava a negros africanos, e ao convertê-los dizendo que Cristo havia morrido por eles há dois mil anos, ouviu do chefe da tribo a seguinte recriminação: "Então, ele morreu há dois mil anos e só agora o senhor vem nos contar?" É a mesma coisa com o mar, encontrá-lo asim numa tarde como numa tarde se encontra o amor, é pensar: "Como pude viver até hoje sem esse amor, como pude viver na ausência do mar?".


Certa vez, adolescente ainda nas montanhas, li uma crônica onde um leitor de Goiás pedia à cronista que lhe explicasse, enfim, o que era o mar. Fiquei perplexo. Não sabia que o mar fosse algo que se explicasse. Nem me lembro da descrição. Me lembro apenas da pergunta. Evidentemente eu não estava pronto para a resposta. A resposta era o mar. E o mar eu o conheci, quando pela primeira vez aprendi que a vida não é a arte de responder, mas a possibilidade de perguntar.


Os cariocas vão achar estranho, mas devo lhes revelar: carioca , com esse modo natural de ir à praia, desvaloriza o mar. Ele vai ao mar com a sem-cerimônia que o mineiro vai ao quintal. E o mar é mais que horta e quintal. É quando atrás do verde-azul do instante o desejo se alucina num cardume de flores no jardim. O mar é isso: é quando os vagalhões das noites se arrebenteam na aurora do sim.


Ver o mar a primeira vez, eu lhes digo, é quando Guimarães Rosa pela primeira vez, por nós, viu o sertão. Olhar o mar, a primeira vz, foi aquele dia em que Daniel entrou na jaula dos leões e eles lhe lamberam os pés. Ver o mar a primeira vez é quase abarir o primeiro consultório, fazer a primeira operação. Ver o mar a primeira vez é comprar pela primeira vez uma casa nas montanhas: que surpresas ondearão entre a lareira e a mesa de vinhos e queijos! Ver o mar a primeira vez é assistir ao parto do primeiro filho ou filha, quando a mulher se abre em ondas e gemidos de amor e vida.


O mar é o mestre da primeira vez e não pára de ondear suas lições. Nenhuma onda é a mesma onda. Nenhum peixe o mesmo peixe. Nenhuma tarde a mesma tarde. O mar é um morrer sucessivo e um viver permanente. Ele se desfolha em ondas e não para de brotar. A contemplá-lo, ao mesmo tempo sou jovem e envelheço.


O mar é recomeço.

Affonso Romano de Sant'Anna

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