PROFESSOR GILBERTO, MEU PRIMO GILBERTO

          Depois de muitos caminhos e descaminhos, a gente se encontra novamente na fase da boa idade. Reencontramo-nos e os nossos contatos se amiudaram, seja para a entrega de um último livro publicado, para um convite para mais uma homenagem que lhe vão prestar, seja para visitinhas futivas com o mano Mendonça. Para um café com biscoito de queijo ou telefonemas preocupados com o nosso projeto-comum.
          No nosso coração, Gilberto, os filhos de tia Celuta, tiveram sempre um lugar especial, porque esta afeição se engendrou no nosso peito nos dias de criança, quando ouvíamos a história das meninas de Pirenópolis e percebíamos o carinho, o desvelo de minha mãe pela irmã e pelos sobrinhos de São João.
          A minha primeira lembrança do primo remonta à vinda de nosso avô Carlos a Bela Bista, depois de muitos anos de desterro em garimpos, sem dar nenhum sinal de vida para as filhas ansiosas. A chegada do nosso avô, cuja história de um grande amor por nossa avó Adélia, nós conhecíamos, foi um acontecimento familiar importantíssimo. A alegria invadiu o coração de nossas mães. A vida modificou-se em nossa casa com o novo hóspede, que sabia contar histórias de aventuras vividas que nos deixavam cativas...
          E quem acompanhou o vô Carlos a Bela vista? O Gilberto da tia Celuta. Que já chegou também cheio de histórias, trazendo a ressonância da chegada em sua casa. A importância daquela visita e a intimidade de ambos emprestaram ao meu primo em certo grau de respeito.
          Poucas foram, que me lembre, as suas vindas a Bela Bista, no nosso tempo de criança e de adolescência. Mas ficaram marcadas para nós e para o poeta também.
          Naqueles tempos a vida andava devagar, os dias se arrastavam com preguiça e no esquema sem cadência do ócio, os poucos dias de férias se espichavam com as visitas à casa das tias, à casa dos parentes e parentes dos parentes, com incursões nos grandes quintais à procura da fruta da estação, com os banhos no poço do Baltazar — só para meninos; nas conversas de primos, armando a trama da conquista, onde as menores eram correios prestativos.
          Aquele tempo ficou gravado na lembrança do poeta, que relembra em algumas de suas poesias antigos costumes belavistenses, como o de se alugar um pé de fruita para o pessoal de Goiânia ou para o da parte nova da cidade, que não dispunha ainda daquela riqueza deliciosa dos quintais da rua do rego.
          Numa de suas férias por aqui, Gilberto se hospedou na Pensão da Dona Bárbara, no casarão ali à esquina do Jardim (hoje residência de seu Athayde Pinto). Dona Bárbara era avó de nossos primos e no contexto das relações familiares daquele tempo, um pouco nossa avó também. Um dia Gilberto e o primo Sinval resolveram comprar cajus na casa da Durica (ali no Sebastião Lemes). O quintal de Dona Durica, como ainda hoje, era enorme e produzia cajus muito doces, daqueles grandes, amarelos. Os dois primos voltaram do quintal com alguns cajus enormes nas mãos, fizeram o pagamento deles e se despediram. E, deixada a casa, saíram colhendo do beiral do muro de telhas embocadas os muitos e belos cajus que ali foram escondidos/amoitados. Talvez o dobro dos comprados.
          Eram raras as suas vindas, mas elas foram marcando de poesia os contatos com as primas. Nós sabíamos que tínhamos um primo meio poeta e isto era interessante.
          Numa destas vindas, debruçando-se à tardinha sobre a guarda da ponte do Sussuapara, cuja imagem sobrevive ainda na lembrança de ventura e aventura de muitos belavistenses, o poeta pontificou: Wste é o lugar mais pitoresco de Bela Vista. Sua prima Dulce, menina, ouvia pela primeira vez a palavra "pitoresco" e conta até hoje que catpou, naquele momento, a seu modo, o seu significado concluindo: quando houver muitos coqueiros, ponte, água correndo, moça branca cheirando, então é pitoresco. E as suas redações escolares enriqueceram-se de pitorescos.
          E hoje, Poeta Gilberto, o lugar mais pitoresco de Bela Vista, só existe na sua lembrança e na nossa saudade.
          E daí vou encontrá-lo, Professor, no final da década de cinqüenta na Faculdade de Filosofia da Universidade Católica, então como nosso professor de Literatura Portuguesa e Brasileira e Linguística Geral. Lá estávamos, assíduas, como alunas de Neolatinas, Ângela Jungman, Marlísia Jungman, Ivanilde Cavalcanti, Ironeuta e eu — alunas estudiosas que levamos para a faculdade, os hábitos de estudo do Santo Agostinho e do Santa Clara.
          Era então o Professor Gilberto, jovem — abtes dos trinta — conhecedor profundo dos grandes escritores e poetas da nossa literatura, apreciador incondicional de Fernando Pessoa, cheio de teoria literária, tímido e risonho, contrastando com a sisudez do Professor Bretas.
          Muitas vezes, o professor deixava entrever alguma coisa de si, falava da publicação de seu novo livro e como exemplo analisava algum poema seu. Para nós, acostumadas à poesia de Alvorada, de Estrela d'alva, o jovem professor procurava explicar a trama de sua poesia, o novo sentido de determinada palavra escolhida, que nos soava às vezes tão material, tão sem poesia, num contexto de sintaxe poética.
          O que o professor tentava explicar em aula, o poeta amadurecido fez em poesia: Resolvo o meu poema/ sob o silêncio neutr/ das palavras perdidas / na paisagem dos signos.

                              [...]
                              Assim, meu mundo é o mundo
                              com suas coisas todas.
                              Imagens retorcidas
                              nas contrações do olhar
                              que as reduz à distância
                              do mais puro silêncio.
                              E que, por ser milhares,
                              se juntam, noutro mundo,
                              noutra paisagem, dentro
                              da nova realidade
                              que o tempo imobiliza
                              em gritos e palavras
                              cuja face de sombras
                              amanhece cantando
                              no poema.

          Na minha lembrança, a sua presença está ligada também à contingência daquela época. A imagem do professor me evoca Saussure. Pois era Saussure pra cá e Saussure pra lá. Saussure e seu livro de difícil acesso, do qual existia um exemplar na Biblioteca da Faculdade. O livro não constava naturalmente do acervo do Bazar Oió. Se quiser, eu óio, dizia o Gilberto em sua veve trocadilhista e sua boa vontade de encontrá-lo para nós. Caro e importado, nós o conseguimos.
          Qual não foi a minha experiência de surpresa e desapontamento quando no final do ano 2003, ao receber as caixas de livros enviados pelo Professor Gilberto, deparo lá com dois exemplares de Saussurre, doados à Biblioteca de Boa Vista.
          A revolução empanou o céu da liberdade e os nossos destinos se divergiram, por longa data. Nossas famílias se criaram e eis-nos de volta a Bela Vista, nosso berço natal, com sonhos que buscamos realizar. Nós, de um lado à busca de uma transformação para aqueles que vivem em desvantagem social, através da Associação de São José; outro, o poeta belavistense, sonhando criar na terra dos buritizais de Leo Lynce, um centro avançado de estudos da Língua para o que vem cedendo, paulatinamente, o ceu acervo bibliotecário desde o ano de 2000.
          Nós nos demos as mãos, unimos nossos ideais sócio-culturais e estamos hoje buscando, com o apoio do Governo do Estado, realizar a criação do Centro Cultural Filberto Mendonça Teles, que abrigará uma Biblioteca especializada em Bela Vista.
          A Associação São José aceitou esta parceria e tem participado desta empreitada, agindo primeiramente como guardiã dos livros já enviados. Quatro mil exemplares se encontram informatizados e caixas e caixas de livros, recebidas, não foram sequer abertas, outras tantas aguardam para o despacho, por falta de espaço adequado para abrigar o acervo.
          Em outro plano, a Associação São José tem lutado para cumprir todos os itens das exigências legais para a assinatura da doação do prédio, através de comodato. Somente no início de fevereiro último conseguimos completar o processo que, no momento, corre com o apoio explícito do Secretário da Cultura de Goiás.
          A Associação São José lhe agradece, Professor.
          O nosso contato nos últimos anos tem acendido na equipe da nossa entidade um interesse especial pela poesia, que levou ao desenvolvimento de bons projetos escolares.
          A Associação São José parabeniza-o pelo título que hoje recebe da Academia Belavistense, Academia que um dia, juntamente com o Professor Cruciano sonhou fundar. Ela existe, Poeta, e está aqui hoje, prestando-lhe esta homenagem.
          Parabéns.

Maria Adélia Blanke Arantes

Bela Vista de Goiás, 4 de março de 2006
Do livro: A plumagem dos nomes - Gilberto: 50 anos de literatura, org. Eliane Vasconcellos, Ed. Kelps, 2007, GO

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