A cabeleira do anjo

Para Ana de Santana

          Um anjo desceu à terra. Não. Um anjo vive na terra e, com sua cabeleira branca, suavemente repousada na fronte delicada e cheia de histórias, ilumina os dias de quem se predispõe a percebê-la. Percebê-la? Sim. O anjo é ela.
          Eu a vi apenas uma vez. Estávamos entretidos com a comemoração inicial de uma brilhante defesa de tese de doutorado, quando ela entrou na sala - não levada por asas, mas por uma cadeira de rodas - e nos impactou com sua presença de pura luz. Disfarçada na pele de uma linda senhora idosa, enfeitada pelo guipir marfim da blusa delicada, ostentando nas unhas dos pés e das mãos o cintilante rosa que lhe denunciava a existência angelical, ela trouxe ao recanto o encantamento necessário para tornar tudo perfeitamente lindo.
           A defesa transcorrera de forma tranqüila. O texto era ótimo, até lúdico, se considerarmos que a doutoranda ousou misturar o científico e o metafórico sem cerimônias maiores. Da voz dos examinadores se recolhia a contemplação amiga, sem deixar de ser séria, de tudo o que fora lido. Entre a candidata e a orientadora, um elo visível de afeto e respeito mútuo coroava a mansidão do dia. Era, enfim, um momento acadêmico como todos deveriam ser: recheado de intenções e de ações sinceras.
          Tivesse terminado ali, na coroação do título alcançado e a posterior troca de beijos, abraços e gestos de gratidão, tudo teria sido lindo. Mas a palavra “lindo” nem sempre traduz com exatidão a expressividade intensa do belo, porque há sempre uma beleza não antevista, que, ao emergir, faz o lindo ser mais lindo do que se supusera.
          Ela fora a primeira professora de Ana, nome da doutoranda. Chegou e se impôs na palavra rápida e emocionante. A todos tocou na emoção de se fazer testemunha de um tempo remoto, revivificado ali, na tese defendida. Por meio de suas palavras, Ana se fez duas: a menina que escreveu “boneca”, entre as primeiras palavras; e a pesquisadora apaixonada que escreveu “serpente” ao traduzir o longo poema que estudara. “Boneca” e “serpente”, transgredindo as marcas culturais, eram agora parte de uma vida, parte da linda Ana. E o anjo que veio anunciar que na mulher sempre habitará a menina, foi a professora, de bela cabeleira branca, iluminadíssima como as árvores que, nesses dias de Natal, oferecem êxtase às ruas através das lampadinhas que piscam-piscam acordando-nos para sentidos densos da vida. Ofereceu-nos, ainda, a palavra energia, contando-nos que agora era seu bisneto de sete anos o aprendiz. Insatisfeita com o rendimento do menino, punha-se a realfabetizá-lo, ainda que ouvisse dele, em sua ingenuidade e sinceridade infantil: “Você não sabe mais nada. Está quase surda e cega”. Ela nos confessou como lidara com a sentença do bisneto. Foi algo assim: “Não sei nada, mas se as pessoas em geral soubessem 1/3 desse nada, o mundo seria bem diferente”. Em meio ao mundo “doutoral”, estava o anjo ali cantando a honra e o amor pela educação infantil. Princípio e fim, fim e princípio. A vida pode ser linda.
          Não sei o nome do anjo. Sei, todavia, que me custou sustentar, na face inversa da face, as lágrimas que brotaram direto do coração deslumbrado. Aquela cabeleira branca foi o sol que Ana consagrara como figura importante no texto analisado. Do texto, ele irrompeu na sala, mostrando que a vida, mais que um somatório de experiências, é uma reserva inesgotável de afetos, que, se cuidados, perpetuam o que, em nós, é o lado em que humano e divino se fundem, fazendo-nos sentir, de fato, obra perfeita de Deus.
          Se eu já tinha na personagem Maude, do livro “Ensina-me a viver”, de Colin Higgins, o modelo de uma velhice plena e bela, veio esse anjo se somar à imagem de Maude e ampliar muitas vezes meu desejo de, nos passos finais de minha vida nesta jurisdição, alcançar o privilégio de ter, pelo exercício de minha profissão, o mesmo amor, o mesmo desejo de me fazer ponte para o crescimento de quem de mim precisar como professora. Ah... E por que não? Quem sabe ter também o privilégio de ter aquela cabeleira branca irradiante e serena, flor de lótus ampliando meu desejo de ficar.

Crhistina Ramalho

« Voltar