Acabou de sair meu novo livro, A Cozinha Mágica de Marcia Frazão, publicado pela Ediouro. Um livro dedicado à Jaqueline Borey, uma grande amiga que Deus cismou de chamar pra cozinha Dele. Ele também é dedicado à Ana Durães, minha amiga irmã de forno, sonhos e fogão, a André Mux, meu irmauzinho de traquinices e gulodices, à Ana Maria Santeiro, minha irmã de agenciamentos, literatura e "fé em nós ", a Écio Melo, meu amigo de receitas, delicadezas comestíveis e encantamentos e a todos os meus amigos especiais que, embora não os conhecendo pessoalmente, em maioria, habitam meu coração e fazem da tela fria do computador um coração vivo, suculento e apaixonado.
Segue um trecho de um dos capítulos do livro, que é de receitas, textos e devaneios.
Eu bem que devia ter desconfiado que Jaqueline já estava de malas prontas para partir. Bem que ela tentou me mostrar uma carta que recebera de Deus, a solicitar seus serviços. Mas Jaqueline tinha uma imaginação tão fértil que preferi pensar que a carta era mais um capítulo do livro que um dia ela escreveria, um capítulo que sucederia aquele onde ela contava agruras que tinha vivido na torre, na época em que fora Ana Bolena. Um capítulo que fecharia suntuosamente o livro, com direito a coro gregoriano e aos acordes das trombetas do Apocalipse. Se eu tivesse prestado um pouco mais de atenção, avistaria no mar dos seus olhos a bruma cinzenta e fria que anuncia as partidas. Se eu tivesse escutado a batida lenta, surda e compassada do seu coração ao nos despedirmos no portão em suas últimas visitas. Ah, se eu tivesse desconfiado do número crescente de suas visitas sem anúncio prévio (Jaqueline era uma francesa bretã que primava pela etiqueta), se eu não tivesse sido tão leviana a puxar conversa sobre as banalidades da vida, se tivesse dado atenção ao súbito desejo que ela demonstrava de retornar à torre em Londres, se eu não tivesse optado pelas praticidades da vida ao lhe dizer que o tempo passara e a passagem custava os olhos da cara, talvez eu tivesse desfrutado plena a despedida que ela me oferecia! Mas, me diga, quem em sã consciência opta por se despedir de um grande amigo? Talvez os poetas, mas não era o meu caso.
Durante alguns meses Jaqueline tentou me mostrar a tal carta que recebera de Deus. E eu, talvez por ciúmes da diviníssima convocação ou por raiva dos olhos do Altíssimo a se revelarem bem maiores que a Sua barriga, ignorei a notícia. Jaqueline acatou estoicamente a minha indiferença e mudou de assunto na última visita que me fez. Indagou-me pela receita de torta de queijo que lhe servi, elogiou a geléia de morango que eu havia criado, identificando (ela sempre identificava os meus ingredientes secretos!) as pitadas de canela e as três lasquinhas de gengibre acrescentadas à receita. O lanche tomou o rumo da conversa e ficamos conversando à mesa por algumas horas.
Quando a conversa exalou o seu último fôlego, Jaqueline levantou e me abraçou chorando. Perguntei-lhe se estava triste.“Não, estou feliz por tê-la como amiga.” E foi nesse instante que me dei conta de que ela não voltaria. Levei-a até o portão e fiquei observando-a por algum tempo, até o seu vulto esguio ser engolido pela curva da rua. Ao retornar à cozinha, percebi que Jaqueline me deixara um envelope sobre a mesa. Não, definitivamente, não, por mais que a sua partida me fosse agora realidade incontestável, não seria eu a ler a tal carta de Deus! Guardei o envelope no fundo de uma gaveta e desejei que o Altíssimo tivesse uma indigestão.
Jaqueline partiu poucos dias depois, deixando minha alma vazia, enquanto enchia a barriga de Deus. O envelope ficou no fundo da gaveta até o dia em que Écio Mello, um grande amigo, cozinheiro de mão cheia e coração de açúcar, convidou-me para um evento gastronômico, sugerindo que eu apresentasse meus pães. Na procura de receitas que pudessem despertar a gula e a admiração das pessoas, vasculhei a gaveta onde escondera o envelope na tentativa de achar o velho caderno de receitas de Virgínia, minha avó portuguesa. O caderno não foi encontrado. Do fundo da gaveta, o envelope me chamava...
Não sei se pela saudade a rachar meu peito ou pela ponta de esperança de que o convite altíssimo só fosse para um banquete, abri o envelope. E lá estava a receita secretíssima de um pão que Jaqueline fazia, seguida por uma frase: “Guarde-a com carinho porque esta eu não cedo nem para Deus!”.
Não foi preciso recorrer ao caderno de Virgínia. A receita de Jaqueline possibilitava um sem número de variações (variações que faziam com que o pão de Jaqueline fosse sempre um outro). E o resultado não podia ser outro senão sucesso! O público se aglomerava em torno dos pães como abelhas em vitrines de padarias, degustando cada pão entre suspiros e gula, como se cada um fosse completamente diferente do outro. Do meu canto, eu observava quieta, matutando a última frase que Jaqueline me deixara. Não, é claro, ela, católica apostólica romana, não teria coragem de afrontar Deus, negando-lhe a receita! Mas por que afirmara que não a cederia nem para Ele?
A matutice foi interrompida por uma chefe de cozinha famosa que indagava pela receita de um pão de berinjela que ela achara soberbo. Escrevi a receita, explicando-lhe que era igual a do pão de abobrinha, de alcaparras, de mostarda, de erva-doce, de toucinho, de cenoura, de alho-poró e dos muitos outros pães que estavam sobre a mesa. “Impossível!”, ela exclamou enquanto guardava a receita dentro da bolsa, desconfiada de que eu havia escondido algum ingrediente secreto. E foi justamente no instante em que vi o descrédito no olhar da moça que compreendi a frase de Jaqueline.
Ela não precisava ceder a receita para Deus porque fora Ele que lhe dera! Ele, que de uma só massa nos moldara em perpétua variação, dera a cada humano a receita, deixando-nos livres para ampliá-la.
Marcia Frazão
Enviado pela autora