Criança recém-alfabetizada no Colégio Cantinho Feliz, eu lia todas as placas, todos os letreiros, todos os cartazes. Uma ida ao centro da cidade, de mãos dadas com a minha mãe, equivalia à leitura de um livro completo, incluindo notas de pé de página e índice onomástico. Repetia com atenção, do início ao fim, a colorida lista de sucos de frutas que uma lanchonete da Rua Sete de Setembro oferecia, entre os quais o suco de graviola, o suco de mamão e o musical suco de cupuaçu, cuja aliteração pode ter tido influência em algum verso que mais tarde escrevi. Com impaciência, minha mãe aguardava o fim daquele recital, pois sabia que do contrário eu não sairia da lanchonete. Foi assim que eu entendi ser um leitor, com a exigência de ir até o final dos textos, ainda que fossem fragmentos e simples anúncios que a cidade exibia.
No ônibus do bairro, havia um aviso bem acima das portas de entrada e de saída: “Cuidado Porta Pantográfica”. Nunca deixei de ler aquelas palavras que, com o tempo, se tornaram mais ameaçadoras para mim. Eu sabia, mesmo sem haver consultado um dicionário, que as portas com compridas dobradiças eram fechadas, pelo motorista, por um sistema de ar comprimido do qual escapava um ruído bem peculiar, como se alguém estivesse abrindo uma enorme garrafa de refrigerante. Mas as portas abertas então se fechavam como uma boca selvagem, ameaçando os passageiros com uma mordida. Eu lia e relia o aviso diversas vezes durante a viagem, com suas três palavras fatídicas. E guardava em segredo o relativo mistério da palavra “pantográfica”, que nunca escutei pronunciada em casa, nunca ouvi na televisão e no rádio, nunca fez parte das brincadeiras infantis. Eu sabia o seu significado, mas não tinha a sua definição.
Aos sete anos de idade, dois agentes policiais apareceram na minha casa e chamaram por meu pai. Havia uma ordem para que ele os acompanhasse a um interrogatório. Começou assim, com uma cena emocional doméstica, a prisão de mais um jornalista d' O Pasquim. Nas visitas que a família fazia ao quartel militar, em geral nos fins de semana, lembro que os presos eram levados a um salão no qual instalaram uma mesa de sinuca. Não havia muito o que ler, na ocasião, a não ser um cartaz azul no qual estava escrito “Fale Baixo”. Jogava uma sinuca compatível com a minha idade, e ainda me lembro de algum visitante a me pedir que eu usasse o taco ao contrário, pois a ponta fina poderia rasgar, num golpe meu, o feltro verde. Depois que soltaram meu pai, meu jogo piorou muito, pois perdi a única mesa de sinuca em que treinava.
Passou-se o tempo até que, quando eu cursava o ginásio, a política incomodava tanto quanto um mau professor. Em 1977, por exemplo, escrevia jornais escolares e cheguei a fundar um deles, com o título de O Marginal . Na adolescência, minha carreira acadêmica se dividia entre fazer provas e sofrer a censura da direção da escola, que detestava as alusões sexuais, a crítica ao estabelecimento de ensino e as referências aos assuntos políticos. Seguidas vezes precisei passar um líquido corretor sobre frases inteiras gravadas na folha de estêncil, antes de fixá-la no mimeógrafo para imprimir o jornal. No meu pequeno mundo escolar, eu comecei a entender a censura e os limites da liberdade. Mais tarde, na Faculdade, fui descobrindo outras dimensões da repressão – e ainda me lembro, com perplexidade, de que houve um General, no Brasil, elevado ao cargo de Ministro da Educação. Foi quando tive a idéia de que deveria reunir em livro os textos jocosos e críticos de minha produção estudantil sob o título de O País da Porta Pantográfica.
No fundo, fiquei fascinado muito mais pela felicidade do título do que pelos textos que pretendia organizar ou ainda escrever. Nenhum dos meus poemas, por exemplo, tinha a vivência de Inventário das Cicatrizes (1978), do preso político Alex Polari, cujos versos tratam da tortura e das memórias do cárcere. E como poderia imaginar um livro do tipo Faz Escuro Mas Eu Canto (1965), de Thiago de Mello, se freqüentava a praia nos dias mais ensolarados? A propósito, nos quesitos política e luminosidade a minha geração estava lendo O Crepúsculo do Macho (1980), de Fernando Gabeira, e foram muitos os rapazes que tentaram conquistar mulheres com o uso do lado feminino (essa crônica não trata de resultados, apenas de informações). Com critérios exigentes, fui descartando poemas, ensaios e relatos que me pareciam desajustados para o meu livro pretendido, até que cheguei a um resultado que me deixou apenas com a folha de rosto. Assim terminou, natimorto, O País da Porta Pantográfica.
O problema é que o título ainda me parece insuperável, e eu me sinto culpado por não estar à altura para produzir a obra que vai preenchê-lo. São muitas as portas que se fecham na nossa cara, todos os dias, e nem sempre a política está envolvida no assunto. É bem verdade que o Senador Eduardo Suplicy apresenta uma robusta defesa da renda mínima no livro Renda de Cidadania – A Saída é pela Porta (2002), mas a idéia para o meu livro está mais para um beco sem saída, um país fechado, algo que lembre enclausuramento e sufoco. Obviamente, sigo adiando o meu projeto e vou testando combinações, como se estivesse movido por uma porta giratória. Outros livros me vieram sem maior suplício: em literatura, aprendi a me fascinar muito mais pelas ambigüidades do que pelas certezas. Ou vice-versa.
Felipe Fortuna
Publicado no Caderno Idéias & Livros do Jornal do Brasil, em 18/8/2007
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