Conversando uma tarde com João Luis Wondebag, isto é, Lobão, ele dizia-me que, apesar de passar férias em Natal e de manter laços de trabalho e convivência com pessoas de alguma forma ligadas ao Rio Grande do Norte, como era o caso de um seu parceiro casado com uma moça de Caicó, ignorava completamente a nossa cultura – não porque não quisesse conhecê-la, mas diante do desinteresse demonstrado pelos próprios potiguares em relação à cultura e a história locais. Sempre que eles se manifestavam era para falar de exterioridades muito distantes da nossa terra. Como viagens internacionais e compras em Miami, coisas que, como se vê, só podem interessar a emergentes desprovidos de cultura e de vida interior, o único recurso capaz de amenizar o grande vazio existencial que leva, às vezes, ao fundo do inferno.
Em compensação, no Recife, ele observara uma espécie de orgulho dos pernambucanos por Pernambuco, cuja história e cultura se faziam presentes, até, nas conversas de rua, com pessoas que, embora de condições modestas, pareciam nutrir um interesse legítimo e presente por seus valores materiais e imateriais. Aqui, não conseguiu saber nada do que desejava sobre nomes e coisas, a não ser que o Centro de Turismo era um dos mais importantes monumentos arquitetônicos da cidade, quando, na verdade, para a sua decepção, não passava de uma contrafação de um presídio mexicano, sem nenhuma importância a não ser a de ter sobrevivido à sanha demolidora dos nossos governantes, geralmente indiferentes aos frutos da cultura.
Descendente de holandeses, Lobão sequer conseguiu saber de alguma coisa sobre a presença dos holandeses no Rio Grande do Norte. Nem mesmo teve acesso ás ficções de Monsenhor Herôncio, cronista equivocado e faccioso, a quem já quiseram conferir foros de historiador, por bajulação e ignorância. Claro, nessa época, Olavo de Medeiros Filho ainda não fizeram a sua estréia como pesquisador criterioso que vai diretamente às fontes primárias, posto que não se satisfaz com informações de segunda mão.
Lobão lembrou-se de ter visto no Recife, ao visitar ateliês de artistas modestos, nobres artefatos oriundos de uma outra época, quando a monocultura dominava a economia pernambucana e Gilberto Freyre podia escrever “Casa Grande e Senzala”, repositório e análise de costumes patriarcais, referenciais do que o sociólogo chamou de “pernambucanidade” e “luso-tropicalismo”. Em Natal, sequer conheciam Cascudo ou a ele se referiam, de maneira complacente, como mero folclorista ou uma curiosidade digna de atenção, como um cavalo com chifre na testa ou um chimpanzé capaz de entreter a curiosidade dos visitantes.
Impressionou-me, em Lobão, o observador sagaz, senhor de uma palestra despretensiosa, embora plena dessa substancialidade desafetada que só encontramos naquelas pessoas que se apresentam como são na realidade, sem demagogia nem empulhação. Esta, uma de suas qualidades, para mim, mais preciosa que o seu carisma de roqueiro atento às maquinações da política que põe o dedo sujo em tudo. Além disso, como grande leitor dos poetas e dos filósofos, compartilhou comigo sua admiração por Nietzsche, Borges, Lautreamont e Debussy. Conversamos por mais de três horas, até a chegada de Danielle Daumarie, sua mulher, então grávida do primeiro filho.
Esse encontro, num hotel da Via Costeira, representa um dos momentos mais intensos de minha vida. Quando cheguei, Lobão já estava à minha espera, lendo a primeira edição de Os Cus de Judas, que eu já lera havia alguns anos, em 1974, por recomendação do grande critico e jornalista português João Carneiro, que conhecera o autor na África, com quem costumava trocar idéias ao tempo em que ele, como correspondente de guerra em Angola, ainda não sonhava refugiar-se no Brasil.
Franklin Jorge