Pelas veredas invocadas de Dom Veleda de Los Pampas
Pequena estória de um cavaleiro gaúcho em terras potiguares
“O tempo é sempre o mesmo, mas sua resposta é diferente em cada folha. Somente a árvore seca fica imóvel entre borboletas e pássaros!” (Cecília Meireles)
Numa dessas noites chuvosas de abril, quando a insônia resolveu chegar sem avisar, meu coração esbravejou de saudades de vários bons amigos que tive ao longo da vida. Gente que o impiedoso tempo se encarregou de nos separar pelas mais diversas razões. Rememorei algumas histórias de um velho amigo, cujo jeito de fidalgo lembrava um cavaleiro andante em busca de aventuras. Uma figura alegre, sempre de bom humor, que gostava de receber os amigos em sua casa para saraus e noites de tertúlias. Tudo regado com um bom vinho seco do Rio Grande e carne assada no ponto certo.
Seus cabelos brancos denunciavam sua longa sabedoria de vida. Os óculos de grau escondiam um par de olhos azuis, que fitavam as pessoas buscando a compreensão da conversa e a cumplicidade da amizade. Magro, alto, bem falante, tinha no nome algo um tanto quanto quixotesco: Dom Veleda de Los Pampas. Apesar dos rumores afirmando que o amigo não tinha o juízo no lugar, escolhera por profissão estudar embriões dos mais variados bichos da terra. Dizem a boca miúda, que o cavaleiro Dom Veleda, profundo conhecedor da alquimia e medicina moderna, já fez inseminação artificial, com a maior naturalidade, em formigas saúvas e tanajuras pretas.
Quando o conheci, através de amigos comuns, o nobre gaúcho já era protagonista de diversos roteiros aventureiros em terras cascudianas e, ao longo do tempo, suas estórias têm sido contadas até no Beco da Lama e adjacências. Como bom notívago, ao som do mais puro forró pé-de-serra, ficava horas escutando o relato das suas pelejas, que pareciam ter saído das páginas de um romance empenado de um escritor nordestino, cheios de maledicências, capaz de criar auroras multicores e plantar feijão no pó.
Apreciando uma aguardente de cana Papary com tira-gosto de churrasco à moda gaúcha na varanda da sua casa, no Alto do Tirol, vendo os ipês-roxos florir entre a imensa vegetação de Mata Atlântica, ouvi sobre a primeira viagem que Dom Veleda fez ao país de São Saruê, terra louvada em prosa pelo romancista Nei Leandro de Castro e cantada em versos pelo poeta norte-riograndense, Luis Carlos Guimarães. Entre goles de cachaça e conversas sem fim, os detalhes de algumas façanhas do cavaleiro viajante vão sendo contados para os presentes, extasiados com as proezas do aventureiro, ávidos pelas suas estórias maravilhosas.
Ao chegar a São Saruê, acompanhado pelo valente caboco Ojuara, o cavaleiro gaúcho de Los Pampas viu grandes paredes de cor estranha e cheiro adocicado. Lambeu a rocha. Era rapadura japecanga da melhor qualidade. Ojuara deu uma colher para que o fidalgo gaúcho tirasse da rocha um pedaço grande. Comeram de enjoar, eram doidos por rapadura. Meia légua adiante, quando a rapadura começou a dar sede, foram em direção de um barulho d'água. Esbarraram na beira de um riacho que corria e se perdia numa curva entre rochas de rapadura. Só depois de acostumar as vistas, perceberam que o riacho era do mais puro mel de engenho.
No sertão encantado do Seridó, participou de um festival gastronômico de fazer inveja aos mais sofisticados restaurantes do mundo. Em menos de uma semana em Caicó, se empanturrou das diversas iguarias que a cozinha nordestina pode oferecer: carne de sol assada, mel de abelha, coalhada, macaxeira com manteiga de garrafa, queijo de coalho, panelada, buchada, rabada, galinha de cabidela, guiné torrado, sarapatel, lingüiça do sertão, paçoca, coxão de porco, tripa assada, farofa de bolão, baião-de-dois, cabeça de bode, costela de carneiro, sopa de traíra, ova de curimatã, agulha frita, ginga no dendê, titela de nambu, arribaçã na brasa, cuscuz, tapioca, bolo preto, bolo-da-moça, doce de jerimum com leite, arroz-doce, doce de mamão verde, ostra no coco, pamonha, canjica, elém de licores de jenipapo, de pitanga e de jabuticaba.
Grande apreciador de livros, o nobre cavaleiro costumava visitar os sebos do Grande Ponto procurando obras raras e edições esgotadas que contasse suas andanças pelo mundo. Leitor assíduo da literatura nordestina, Dom Veleda fez intercâmbios culturais, por dias a fio, com Ariano Suassuna, um dos maiores mestres literário de Pernambuco, quando discorreu sobre as tradições gaúchas e lhe foi mostrado toda a beleza poética do Movimento Armorial. Em Natal, teve enorme afinidade com o alfarrabista e editor do Sebo Vermelho, Abimael Silva, que lhe presenteou a obra do Mestre Câmara Cascudo, “História do Rio Grande do Norte”. Conheceu de perto o poema em processo do poeta semiótico Falves Silva, além de ter adquirido várias obras de arte de alguns artistas plásticos natalenses. Sua vida intelectual era recheada de metáforas nas confrarias boêmias de Natal.
Nosso herói gaúcho começou a se sentir cansado de tantas desventuras no sertão e litoral potiguar. Achava injusto ter que voltar à sua tranqüilidade nos pampas gaúchos sem levar consigo a formosa esposa nordestina Ariane de Toboso para se dedicar somente a libertar os oprimidos, salvar princesas em torres de castelos e derrubar gigantes para a honra e glória de sua nobre dama. E embora lhe fosse difícil resistir às lágrimas e pedidos de todos os amigos para que ficasse em Natal, Dom Veleda de Los Pampas resolveu partir, numa tarde de um sábado tristonho, para se aquietar na sua aldeia e no seio da família no sul do país.
Alexandro Gurgel