Hoje amanheci com uma vontade danada de mexer nas coisas do passado, rever velhas cartas de amor, que ainda guardo, como fonte de inspiração literária, e ouvir discos antigos, como aqueles de Carlos Galhardo, Orlando Silva, Sílvio Caldas, Dolores Duran, Agostinho dos Santos, Anísio Silva, Elizete Cardoso, que tanto fizeram a cabeça de minha geração romântica; E o Nelson Gonçalves? Não há um buraco na minha Campininha que não tenha surrado na vitrola "A Volta do Boêmio"; "Voltei, pra rever os amigos/ que um dia/ eu deixei a chorar de alegria/ me acompanha o meu violão". E com o violão debaixo do braço, depois da terceira rodada de cerveja, a gente saía embriagdo de paixão em busca da mulher amada. E toma serenata, pois a noite era uma ternura embalada em nossos braços, e cheirava a mulher. Isto mesmo. A noite tinha cheiro de fêmea. Mas cadê a mulher? Ó figurinha difícil.! Quem tinha uma mulher nos braços levantava as mãos para os céus e orava: "Eu quero confessar baixinho/ juntinho ao teu ouvido/ ó mulher querida"... "Eu sofro por te amar/ e confesso com prazer/ pois embora não me ames/ hei de amar´te até morrer". Em cada música uma saudade, em cada saudade uma paixão que ficou retida na caligrafia das velhas cartas. Mas a música relembra tudo. E nesta manhã nostálgica, recostado na cadeira do papai, em meu escritório de tantos livros, vou lendo cartas antigas e ouvindo o barulho da música e pensando. Victor Hugo não disse que a música é o barulho que pensa? Afinal, o dia amanheceu frio e o desejo mesmo é de ficar em casa, encolhidinho, ouvindo música e viajar. Deixar que a inspiração pesque aqueles instantes que ficaram presos no fio telegráfico da saudade: "Eu sonhei que tu estavas tão linda/ numa festa de raro esplendor/ teu vestido de baile lembro ainda/ era branco, tudo branco, meu amor". A música rodando e eu rodando, meus pensamentos buscando o tempo que não arreda o pé de Campininha, e ali me encontro, agora, butecando madrugada a dentro. Os amigos eufóricos, a cerveja caindo no copo, a cabeça rodando, e a lua deste tamanhão! Vamos fazer serenata? E lá fomos nós em direção à musa adormecida. A madrugada já ia alta, quando paramos defronte da casa de minha namorada que, aquelas horas, imaginava eu, devia estar sonhando comigo. Chegamos mansinho, meu colega dedilha o violão e emocionado e trêmulo soltei a voz: "Acorda, minha bela namorada/ a lua nos convida a passear/ os raios iluminam toda a estrada; por onde haveremos de passar". Cantei a primeira canção e esperei que alguém se manifestasse na casa. Nada. Cantei a segunda, a terceira. Nada, nada, nada, nem o acender da luz. Tudo era silêncio. Afinal, cadê minha namorada? A resposta chegaria em poucos minutos, quando a vi descer de um táxi, acompanhada, no exato momento em que virava a esquina e cantava, na solidão da rua: "Noite alta, céu risonho/ a quietude é quase um sonho/ o luar por trás da mata/ qual chuva de prata/ de raríssimo esplendor/. Só tu dormes e não escutas/ o teu cantor/ revelando a lua airosa/ a história dolorosa/ desse amor".
José Mendonça Teles
Do livro: Crônicas do Campininha, Editora Kelps., 1996, GO
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