Meu dia de surdez coincidiu com o canto de sereia da grande empresa

O ano acadêmico estava terminando. Por ser o quinto, era também o último. A preocupação dos aspirantes a desempregados, tão presente hoje, naquela época não passava de uma desconhecida. Desemprego? Quem é esse senhor? Estávamos aguardando os convites, reparem bem: foi usado o plural, podendo até nos dar ao luxo de escolher. Mesmo assim, quando, com rufar de tambores, chegou a expedição de caçadores de cabeças da Grande Empresa, houve um certo alvoroço. Fato estranho: entre as tribos conhecidas, a dos caçadores de cabeças permaneceu firme e forte, desafiando a civilização.

Um funcionário, colaborador, empregado enfim, da "GRANDE EMPRESA" é um ser curioso que ostenta um cérebro cuidadosamente lavado e progra­mado, além de possuir, entre os demais detalhes da sua  indumentária, a aura do bem-sucedido. Dito de outra maneira, é um bazófio. Almofadinha, se preferirem.

Naqueles anos, pertencentes a uma época na qual se apregoava "faça amor, não faça a guerra", bem diferente de hoje, quando a tônica é "faça qualquer coisa, desde que conte ao analista e que o personal trainer aprove", trabalhar na GRANDE EMPRESA era algo especial. Como nós éramos vencedores, parecia que o destino se curvava ante o mérito, pensava no meu ín­timo, com indisfarçável ponta de orgulho. A GRANDE EMPRESA dava mostra de apurado faro: sabia onde encontrar talentos, era preciso admitir.

Dito isso, o esquadrão da peneira analisou currículos e aplicou um série de testes. Por alguma razão, fui um dos que conseguiram interpretar manchas, ajeitar dominós e acertar uma série de perguntas melhor do que aqueles que viram seu sonho se desfazer. Nenhum dos excluídos ficou mortificado; afinal, inúmeras outras oportunidades estavam aguardando disciplinadamente, para se apresentar.

Poucos dias depois fui convocado e me apresentei ao escritório comercial da GRANDE EMPRESA. Era o último obstáculo, uma formalidade, disseram-me os integrantes do primeiro time. A caça terminara. Bastava não desagradar ao segundo time. Para início de conversa nada de atrasar, uma vez que o Doutor X. manifestara seu desejo de conversar comigo às 15h.

Pontual como um eclipse, apareci e tive o privilégio de uma espera gratificante. É natural, pensei, trata-se de uma pessoa ocupada. Meia hora depois o natural estava adquirindo cor de descaso. Um pouco mais tarde já estava achando que aquilo beirava à falta de urbanidade; estavam tratando com um pré-qualificado... um vencedor... um enorme potencial. Eu era no mínimo isso, na minha avaliação eivada de alguma parcialidade, talvez.

O ciclo da revolta progressiva, interrompido por generosa distribuição de café, foi descontinuado por uma secretária, tão neutra, que nem saberia dizer a qual sexo pertencia. Esta me fez entrar na sala do chefe.

A primeira impressão foi medíocre. Estava à frente de um vencedor sem brilho particular, cuja aparência ocultava os sinais do sucesso. Notei, de relance, algumas concessões à idade e ao sedentarismo. O vulgo diria gordo e careca. Imediatamente, com o gesto que um regente empregaria para exigir um pianíssimo da orquestra, fui convidado a sentar-me, atividade para a qual já fora treinado na sala de espera. Sentei e aguardei pelo melhor.

Troca de banalidades. Um mergulho na minha biografia com o interesse que a duras penas conseguia vencer tentativas de bocejo. Se estava me sentindo à vontade? Quer uma resposta sincera? Vez por outra, um silêncio constrangedor se instalava entre nós. As perguntas vinham sempre de improviso, como a querer surpreender-me. "Você gosta de estudar?" "Já passou por outras entrevistas", "Qual o seu passatempo predileto?", "Autor preferido?" etc.

Após alguns rounds, durante os quais tentei dar as respostas que, na minha apreciação, eram as esperadas pelo entrevistador aparentemente distraído, eis que veio uma pergunta que me colheu desatento:

"O que acha você de si mesmo?" Pergunta profunda. Falar no meu desespero ao identificar minha condição de mortal, ou talvez sobre aquilo que eu era antes de ter a rara oportunidade de vender a minha força de trabalho, o meu talento à empresa de nome pomposo? Seria o caso de me mostrar modesto... mas a modéstia é apanágio dos velhacos, tinha lido. Dizer que me considerava um herói...

– Bem, comecei... sem saber ainda como iria continuar.

– Um instante, disse o falso Toscanini. Pegou um telefone e, sempre dirigindo um sorriso polido na minha direção, trocou idéias com um interlocutor. Espero, sinceramente, após tantos anos, que tenha recebido alguma idéia. Pelo menos teria lucrado algo, pois nada de útil transmitiu, descaracterizando uma troca eqüitativa.

– O que estávamos dizendo?

– O senhor perguntou...

– Ah, já sei. O que pensa a seu respeito. Momentinho! E sem ambages, pegou o telefone para um novo diálogo do qual só pude saborear metade. Talvez tenha sido a pior, afinal o outro poderia ter sido uma pessoa mais interessante.

E assim continuamos, ou melhor dizendo, assim tentei passar da primeira sílaba da resposta à tal intrigante pergunta. Como conseguir, se logo depois ele conversou ternamente com "docinho"? A seguir, tive a ventura de conhecer as medidas imprescindíveis para o aprimoramento da seleção brasileira de futebol, tema de novo e animado diálogo com alguma outra autoridade no assunto. Finalmente, após a quinta ou sexta tentativa frustrada em transmitir o que este grande talento pensava a respeito de si, arrisquei no tom amistoso que empregaria, ao descobrir terem se esgotados os ingressos para os quais estivera aguardando horas na fila (debaixo de chuva, só para sublinhar a gentileza do meu tom):

– Se o senhor estiver realmente interessado em conhecer a minha opinião a meu respeito, sugiro que largue o telefone. Se não foi um primor em termos de diplomacia ao menos era a primeira fala espontânea de minha autoria naquela sala.

– Meu jovem. Essa é uma forma de testá-lo. Na sua atividade profissional lidará com altos executivos ocupadíssimos e deverá saber ser flexível. Percebe?

– Perfeitamente, senhor, procurarei me lembrar disto quando estiver lidando com um alto executivo...

Desnecessário dizer que ele nunca soube qual a minha opinião a respeito de mim mesmo e eu não entrei na GRANDE EMPRESA. Provavelmente foi bom para todos nós.

Alexandru Solomon

« Voltar