O "assustado"

O termo pode parecer estranho para os mais jovens mas aqueles que, como eu, foram  adolescentes no início da década de 1960 sabem muito bem do que eu estou falando. O “assustado” foi, na época, uma verdadeira instituição social, um projeto de relacionamento entre jovens cuja importância é comparável ao “date” norte-americano, fundamental na iniciação sexual, social e afetiva dos jovens.

E o que era o assustado? Teoricamente, funcionava assim: chegava-se de surpresa na casa de alguém (daí o nome “assustado”) com vitrola portátil e discos. Arrastava-se os móveis do lugar, abria-se espaço, e dançava-se por algumas horas. Esse era mais ou menos o modelo, que ocorria com pequenas variações de Norte a Sul do Brasil.

Em Campina Grande, onde passei esses anos dourados da minha existência, não se chegava de surpresa. Imagina se os pais iriam permitir isso. O assustado era combinado antes, e acontecia geralmente no sábado à noite. Era mais uma festinha cujo objetivo principal era dançar e namorar, sem que houvesse um motivo mais formal, como aniversário, ou coisa parecida. Isso livrava os pais de gastarem dinheiro, e fornecia a eles uma oportunidade de conhecer melhor os amigos do filho ou da filha e de ver como se comportava a turma fora da escola. Por isso, o assustado era bem-vindo, e a maioria dos pais concordava com a sua realização em casa.

Para nós, adolescentes, era um dos pontos altos da vida social. Em uma cidade pequena, sem grandes opções de divertimento, com os clubes sociais muito fechados e restritos aos sócios, os assustados ocorriam em todas as turmas e eram promovidos tanto pelas sofisticadas alunas do Colégio das Damas quanto pela galera mais proletária do Colégio Estadual.

Dançava-se sambas e boleros, mambos e baladas românticas. Na vitrola, Waldir Calmon e seu conjunto, o piano de Carolina Cardoso de Menezes, Trio Irakitan, Perez Prado, Românticos de Cuba, e a novidade que era a orquestra de Ray Conniff, com seus arranjos moderníssimos de “Besame Mucho” e “Stranger in Paradise” (que eram a primeira e a segunda faixa do elepê). Havia ainda Gino Paole cantando “Sapore de Sale” e Peppino di Capri com “Roberta”.

Era 1962, os Beatles ainda eram um projeto desconhecido e apenas Elvis Presley e Bill Halley e Seus Cometas balançavam os quadris de alguns de nós, mais atrevidos. No entanto, o rock and roll não penetrava nos assustados, onde o objetivo era namorar e dançar de rosto colado. Usávamos vestidos de cintura, com saia rodada e blusa fofa no busto, presa aos ombros por alcinhas; o cabelo armado, cheio de laquê e com as pontas arrebitadas. Nas unhas, a novidade: esmalte cintilante, que era o último grito da moda. Os rapazes caprichavam no penteado, na barba bem feita e no paletó e gravata. O perfume era Fleur de Rocaille para as meninas e Lancaster para eles.

Os elepês, ou “long-playings”, rodavam na Radiola ABC, ou em vitrola portátil, onde os alto-falantes faziam parte da tampa. Bebia-se cerveja e “ponche”, suspeitíssima mistura de champanhe barato com suco de frutas. Depois foi que inventaram uma mortífera associação de bebida alcoólica com leite condensado, o popular “leite-de-onça”, responsável por muitas ressacas adolescentes. Mas, a rigor, bebia-se muito pouco. O bom era o namoro, a paquera, a novidade de ficar tão perto do corpo do outro, os odores, os toques, as surpresas...

Depois, já para o final da década, veio a loucura: o rock, a jovem guarda, os hippies, depois os punks... Ninguém mais fazia os doces e inocentes “assustados”. O homem pisou na Lua, a barra das saias subiu, começamos a tomar anticoncepcional e, junto com a virgindade, mandamos para o espaço os sonhos adolescentes embalados ao som de tantas músicas imortais que, quando as ouço hoje, parece que estou novamente num daqueles assustados, dançando, o coração disparado na freqüência saudosa da juventude, para sempre e definitivamente perdida.  

Clotilde Tavares

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