Ele tinha sobretudo majestade. Não importava se num botequim xexelento do velho centro do Rio ou entre a vip-inteligência dos bares da Zona Sul. Segurava o violão de forma desconcertante — atravessado ao peito, quase na vertical, feito um martírio ou um drama. E cantava a morte com a imponência solene de quem profundamente se sabe mortal.
Nossas vidas esbarraram-se com freqüência, nas madrugadas aturdidas, entre hippies, travestis, proxenetas, gigolôs, michês, prostitutas de baixo calão, a ratatuia que povoa os botequins humilhados, bebe o que não tem e grita, e briga e surrupia tudo o que tem direito. Mesmo ali, altar da transgressão, era como se estivesse em palácio a sua cena, feita de cerveja, violão e o anúncio — claro — de que o tempo é um animal odioso.
Assim, tocou a transcendência, como nenhum outro poeta popular do meu País — as mãos curiosas de sua verdade terminal; e ousou perseguir, até o fim, as noites caducas, as noites mixas, a solidão do vasto geral reino da gonorréia, da sífilis, e do cancro mole — maltratado continente de bêbados, malucos e doidos-varridos.
Não há o que chorar. A sua existência se cumpriu (ou foi consumida?) no azarado destinho que o pôs num País que decreta aos gênios populares apenas o direito ao "folclore" — como se este fosse a glória mázima de uma biografia toda ela devotada à poesia. Não há o que chorar, se nascer aqui sempre foi triste, desolador e arbitrário.
Olho lá: numa sacola das Casas Sendas, Madame Satã vendia o seu livro de memórias, e acabava liquidando sumariamente a esmola amealhada, num porre que o colocava literalmente a nocaute sobre a mesa e o chope; Ismael Silva, o compositor incomparável, se escodia num apartamento decadente da escrota Gomes Freire e Nelson Cavaquinho, na via-crucis dos bares, sempre teve a birita financiada por otários, tietes e admiradores. Olhar lá é o pior.
O fato é que nesta noite e neste subúrbio, a voz rouca, devastada pelo álcoool, pelos anos e pelo cigarro, vem desde o fundo do fundo do poço, como um presságio, como uma nota dissonante, e canta um verso sublime à nossa existência provisória, esse delicado horror que preferimos esquecer — como uma verdade incômoda trancada dentro de uma gaveta. E vem com ela uma outra espécie de morte — esta que os vivos provam a cada morte que entre a gente acontece.
Wilson Bueno