MIUDEZAS
Minha mãe mantinha em cima de sua cômoda, no quarto, em lugar de destaque, o único presente que lhe dei na vida. Era uma pequena cesta de vime, com tampa, que trouxera da viagem que fiz pela primeira vez ao mar, quando tinha nove anos de idade. Nela guardava um retrato meu e outras lembranças. Era seu pequeno tesouro, a saudade do filho que fora, entre tantos outros, cumprir seu destino na capital.
Os maiores tesouros existem dentro de pequenos recipientes. Não falo em diamantes, o preferido dos exilados ricos, que consegue refazer a vida do outro lado do mundo só com o que trouxeram escondido no forro do casaco. Mas daquela pedra lisa, fina e transparente, de duas cores (amarelo e marrom) que coloquei numa pequena caverna que a chuva formara na parede da cozinha do lado de fora, rente ao quintal. O reboco cedera com a umidade, mas um pedaço dele, com a tinta externa ainda intacta, funcionava como a tampa de uma gruta criada ao acaso.
Uma brincadeira qualquer, exercida em lugares ermos, me revelou o segredo. Bastou retirar com cuidado aquela parte que se deslocara naturalmente do resto da parede, cavar um pouco a massa esgarçada pela chuva e tampar tudo de novo, como se ali não tivesse acontecido nada. Aproveitei os dias seguintes para observar se havia perigo de descobrirem a mutreta.
Como a armação permaneceu intacta e desconhecida, lá comecei a colocar os objetos mais caros, os que jamais poderiam cair em mãos inimigas, ou seja, irmãos ou vizinhos. O primeiro era a pedra rara, colhida na beira do rio, e que se destacava das outras, normalmente redondas e opacas. Essa era retangular e deixava passar a luz transformando-a, de branca, em ouro puro. Eu carregara a preciosidade por meses em todos os bolsos, e acreditava que era obediente ao tato, como se sua forma fosse mudando conforme eu esfregava o dedo ou a colocava entre as mãos postas.
Eu tinha predileção por cantos, afastados de todos, onde podia imaginar a realidade que habitava minha timidez. Cheguei a ficar um ano, na escolinha do pré-primário, nesse anonimato, refugiado na pequena mesa situada longe da agitação geral. Como não tinha ainda idade para a alfabetização, fiquei mais um período e tentei recomeçar no mesmo lugar que abandonara antes das férias. Mas a professora não permitiu. E me incluiu na mesa principal, onde dividíamos jogos, desenhos e brincadeiras. Aprendi a compartilhar os momentos, mas em casa, mesmo convivendo com multidões de crianças que habitavam e freqüentavam a esquina onde morávamos, arranjava um jeito para desenvolver minha guerra particular.
Foi por isso que coloquei no esconderijo o revólver de madeira que fabriquei de maneira tosca, já que nunca fui vocacionado para o artesanato, mesmo o mais simples. Era constituído de um cabo, um falso cano e um elástico, que servia para arremessar objetos em direção aos bandoleiros. Toda vez em que me via em perigo, eu abria a batcaverna e de lá extraía a ferramenta necessária para enfrentar a bandidagem.
Hoje é proibido ter arma, assim como desapareceram miçangas e lantejoulas, que eram as esmeraldas e pérolas das meninas, colecionadas em caixas coloridas. Era proibido invadir essas arcas, mesmo em época de carnaval, quando precisávamos confeccionar fantasias para achacar a rua com nossos estandartes. Pedíamos licença então para as irmãs costurarem algum mimo no pano sujo que empunhávamos em mastros improvisados. E saíamos batendo lata, acobertados por máscaras de pano da pior qualidade e enfeitadas pelo brilho supérfluo dos bordados. Voltávamos com o dinheiro para o sorvete e até mesmo, às vezes, para as revistas.
Os recursos arrecadados com o auxílio das miudezas femininas, que garantiam a credibilidade do nosso bloco (pois denunciavam um certo cuidado no improviso) nos ajudavam a adquirir novos tesouros, que escondíamos para nos preservar. Era uma garantia para o futuro, essas coisas insubstituíveis que ficaram para sempre. Elas projetam lembranças de uma infância eterna e tão sagrada quando uma prosaica cesta na cômoda da família numerosa.
Nei Duclós