Ao longo de vinte e cinco anos, vinte e cinco anos dolorosos, intensos, ao longo de vinte e cinco anos eu vi, testemunhei o ser humano pedindo, implorando perdão, olhando fundo nos olhos de seu semelhante, implorando perdão. Eu vi, vi o ser humano pedindo desculpas, na fila de caixas-de-supermercado, por pisar em unhas encravadas, por tropeçar, distraído, em outros corpos, outros semelhantes. E por mais fundo que olhassem com seus olhos em outros olhos e pedissem, pedissem perdão, suas desculpas de mera formalidade, mera etiqueta, mero convívio, não passavam. E o ser humano - ah, esta raça! -, acreditava na sua plenitude, na plenitude da palavra “desculpa”. Ao longo de vinte e cinco anos, eu vi. Vi primeiro meu pai pedindo perdão à minha mãe por um sofá de cor desagradável, em seguida, vi minha mãe, pouco antes do último sopro de meu pai, pedindo perdão pelos longos e árduos anos de casados – certamente, estou esquecendo de outros “me desculpe” que presenciei em minha vida. E vi minha mãe perdoando, perdoando-se das constantes degradações de meu pai. Quinze minutos antes, antes de o meu pai perecer, antes do meu pai desistir, estava eu lhe pedindo desculpas por ser seu filho. Eu lhe pedia desculpas por não querer encontrá-lo cego para seus equívocos e eu lhe pedia desculpas. Passei, após sua morte, três anos, três anos me culpando por ser seu filho, três anos querendo, enfim, me perdoar. E não me perdôo por ser o último a lhe dirigir as considerações necessárias. Ainda penso que se eu não o encontrasse deitado, à passagem de suas últimas horas, eu, ainda penso que ele não teria nos deixado. Não preciso entrar em grandes detalhes e pequenas observações...
Vinte e cinco anos para muitos é uma transfiguração, mas e para mim, para mim que estou a lhes observar e como o personagem de Dostoiévski, o assassino, o célebre assassino, estou eu à procura de uma remissão, esta que não é minha? As pessoas matam e pedem perdão, as pessoas brigam com seus namorados e namoradas, com seus maridos e esposas, numa segunda-feira, antes de mastigar a primeira garfada de comida, e pedem perdão. As pessoas odeiam, fazem sofrer e pedem perdão, as pessoas bebem de suas urinas para não morrerem de sede e pedem perdão, as pessoas... Sempre elas, sempre elas fofocam – sim, eu também fofoco -, esperam o intervalo da novela e fofocam sobre vidas alheias, a taxa de juros, o tomate que está caro, as promoções de verduras na quarta-feira e vidas alheias.
Quanto vi do homem e quanto não quis ver. Certa vez, em minha adolescência, passei seis meses confinado. Era eu, o programa de brigas familiares, um ou outro livro e minhas pobres cachorrinhas. Reduzi o que pude e como pude e podendo não mais queria encontrar o ser. Minhas relações são exíguas, não gosto do ser humano e de suas rasas desculpas, embora olhem a fundo outros olhos e implorem seus perdões. Não gosto do ser humano por um dia perecerem e não terem dito tudo o que sentem a seus semelhantes, não terem feito tudo por seus semelhantes, não terem ousado gritar para seus semelhantes e terem colocado os seus semelhantes, aqueles, aqueles que de nós saem, que vemos amadurecer com o intuito de nos tornar melhores para a vida, com o intuito de dar continuidade a nossa estirpe, abaixo de outros semelhantes, semelhantes desconhecidos, sem relações consanguíneas. Por conveniência vive o ser. E pedem perdão, pedem desculpas, plantam desculpas num pote de margarina e imaginam que, como aquele pequeno broto de feijão no jardim de infância, as desculpas irão, em poucos dias, rebentar a terra e nos frutificar com uma porção de “desculpinhas”.
Acredito que a coisa mais sensata que ouvi, foi “você não muda”, num momento de sublimada vontade, “nuca irá mudar” e a duradoura despedida. Foi este “não” que em meu ser latira por muito tempo. E eu com o querer de mudar, mudei. Mudei primeiro a cor dos cabelos. Mudava-os de acordo com a estação, mudava-os. Sempre, sempre os mudava. Mais tarde vim a mudar os meus comigos. Existiam medicamentos que os dominavam, os transformavam. Vozes de insulto que por alguma razão se manifestavam contrárias às minhas decisões.
É verdade, sempre deixei para me decidir nos acréscimos, quase no fim das partidas. No entanto, mudei. Mudei, inclusive, o convívio com minhas paixões. Eu as amava por uma quinzena e o fogo crepitante em mim se extinguia. Extinguia por certos receios meus, extinguia por superficiais observações e qualidades que não me agradavam, qualidades que não me inclinavam a prosseguir. E eu, ao invés de dar por concluída esta etapa, fugia. Pensava que fugindo o sofrimento seria menor. Eu lhes poupava de lágrimas, do cênico desfecho, do entregar coisas e presentes e fotografias e alianças de compromisso, eu lhes poupava da última tentativa. E eu fugia...
Percebi que “desculpa por isso” não era tão diferente do “por favor, me perdoa, vai... Por favor”! lacrimoso e resolvi não só mudar a cor dos cabelos, como resolvi agir diferente. Quem sabe se agindo, eu pudesse realmente me desculpar.
Para as poucas, ínfimas amizades que possuo, a distância faz com que eu somente admire qualidades e seus defeitos se tornem inexistentes. São qualidades que invejo, qualidades selecionadas em pessoas distintas de caráter, reputação, idade. Não que elas não possuam defeitos, mas seus defeitos, se um dia revelados, farão com que eu as despreze.
Foi muito fácil descobrir quando perdoar e quando querer se perdoar... As palavras, por mais amor, paixão que lhes devote, não são suficientes para dignificar a pureza do sentimento... As pessoas traem, todos os dias elas traem e vivem de suas degradações, de suas libertinagens, de seus vícios, sem amor, sem a pureza. A pureza da dor.
Elas nada são. São etiquetas em figurinos, somente e mais nada.
Diego Ramires