Da janela no trem
Hoje estou aqui, amanhã não sei. Mas, em quantos lugares já estive? Quantas pessoas conheci?
Impulso de “ir” e uma ausência total de apego ou medo que certamente facilita esta predisposição para ir e ver a vida como ela é lá adiante!
Será direfente daqui?
Minhas lembranças mais antigas começam entre meus cinco e seis anos, são lembranças das viagens e as idéias a respeito do mundo que elas me trouxeram. Imaginava o mundo além dos limites de minha pequena vila, juntadas como num mosaico todas as possibilidades que minha mente encontrava em cada lugar que conhecia.
Detalhe nós não tínhamos televisão em casa, esta história eu conto outro dia ....
Minha mãe nos levava a passeios dos mais variados todo fim de semana era uma novidade. Entre eles os de trem, em direção a capital de São Paulo.
Saíamos de madrugada minha mãe, eu e meu irmão caçula, como eram longas aquelas noites que precediam nossos passeios.
Eu quase não dormia, com medo de perder a hora!
Bem cedo antes do sol raiar saíamos de casa, eu olhava as ruas e pensava como era diferente sem os sons e as faces que faziam parte da rotina, e este silêncio me dizia que são as pessoas que fazem as coisas ... em poucas horas elas estariam ali outra vez, reconstruindo seu mundo.
Atravessávamos o canal da bertioga entre Guaruja e Santos no cais, numa barca antiga e barulhenta, onde eu sempre ia na parte de trás, quase pendurada.
Observava o movimento da água e o reflexo do sol, às vezes também tentava descobrir de que país eram os navios atracados no cais inquirindo minha mãe sobre as bandeiras e se ela não soubesse eu ia questionar o timoneiro ou qualquer outro que eu julgasse habilitado.
Ainda posso sentir o sabor da água que algumas vezes respingava em meu rosto, e lembro do orgulho que sentia quando ficava perto do marinheiro que conduzia a barca, tinha um que era nosso vizinho “Seu Bartho” uma figura forte, homem bonito alto com olhos azuis,voz imponente e sempre com um sorriso sério, eu achava o sorriso dele sério e também tinha algo triste.
Ele era calado e nunca conversava com ninguém da vila, mas quando coincidia de pegarmos a barca em que ele estava trabalhando era ótimo. Eu corria para a cabine e ele se transformava respondia todas as minhas perguntas com orgulho de quem conhece bem o que faz.
Hoje acho que ele era triste porque não tinha filhos, ele era bem mais jovem que a esposa “Dona Izolina”, as filhas dela eram quase da mesma idade que ele, imagino que sofriam algum tipo de preconceito por serem um casal fora dos “padrões”.
Desembarcávamos no cais de Santos uns vinte minutos depois do embarque, andávamos entre caminhões aduaneiros que circulam ainda hoje na rua de paralelepípedos sobre os trilhos do trem, na beira do cais.
Ali o cheiro de enxofre e os pombos comendo grãos que caíam dos caminhões, ou dos vagões dos trens de carga, ainda fazem parte do cenário. Mas a estação de trem Santos / Jundiaí não sei se já foi restaurada, porém a última vez em que estive lá era só escombros, lembro que houve um projeto de restauração do que sobrou a alguns anos.
A estação era escura, um piso de mosaico preto e branco encardido mas bem varrido, ainda lembro das pilastras de madeira escura que se encontravam através de seus arcos, para formar os guichês onde minha mãe comprava os bilhetes.
O trem era simples e sem nenhum conforto além dos bancos de madeira, eu jamais dormia ou perdia meu tempo conversando. Eu ficava à janela encantada com a paisagem, em determinadas épocas a serra era quase toda tomada por Ipês, principalmente amarelos. Partíamos de uma estação abandonada em direção a montanha num sistema de cabos de aço, que fazia muito barulho no meio da serra do mar, sempre havia neblina e frio as vezes chovia uma garoa fina que me fazia fechar a janela e a todo momento limpar o vidro embaçado.
No dias frios havia muita neblina ao longo de toda a ferrovia, isso tornava mais interessante a paisagem. Ao longo da ferrovia encravadas na serra haviam vilas, construídas para que os funcionários da ferrovia vivessem com suas famílias, sempre próximas a estação de passageiros, de controle ou manutenção.
Eram casinhas num tom amarelo ocre, de madeira do tipo tapamento americano e janelas verdes todas iguais,apoiadas sobre blocos de pedra.
Homens de uniforme da mesma cor das casas, com pranchetas e blocos de papel jornal em punho, caneta encaixada na orelha nas pequenas estações, eu não lembro exatamente quantas paradas eram mas uma delas eu jamais esqueci.
Paranapiacaba, no alto da serra do mar em São Paulo entre o planalto e o mar, em tupi-guarani quer dizer "lugar de onde se vê o mar". Aí nós descíamos na plataforma, minha mãe comprava pão com mortadela, Tubaína, Sonho de Valsa, maçã do amor.
Que delícia! O Sonho de Valsa eu confesso que não gostava muito não, eu sempre dava para o meu para o meu irmão ou trocava por um pouco mais de pão com mortadela e maçã. Depois voltava correndo pra minha janela, queria ver o “meu mar” e seus canais serpenteando lá embaixo, em alguns momentos do trajeto isso era possível.
Conversava comigo mesma me perguntando:
Como seria a rotina e a vida daquelas pessoas? Qual seria o tamanho do mundo delas? Me parecia tão longe de tudo.
Chegávamos, no horário do almoço na estação Brás, e seguíamos de ônibus para a casa da irmã mais velha da minha mãe, no bairro da Penha. Almoçávamos e enquanto as duas trocavam figurinhas, eu e meus primos brincávamos de escolinha ou explorávamos o jardim o porão e a rua em busca de aventuras. E eu sempre atenta às diferenças ambientais e comportamentais que nos envolvia.
Às vezes no domingo pela manhã fazíamos o caminho de volta juntos, para que eles fossem a praia e aí começava outra aventura.
Hoje ainda olho para o mundo com este olhar curioso, experimento cada detalhe e busco através das sensações saber o que as diferenças me trazem. Deixo o mundo e a vida se apresentarem, a janela do trem transformou-se numa porta aberta que atravessada apresenta caminhos para a menina que queria saber o tamanho do mundo,sentir e decifrar os segredos da vida que há nele.
Lilian Vasconcelos
27/03/2010 Chiang Mai Thailand