Um peixe vivo
Em 1975 eu tinha menos de 20 anos, o coração batia no escuro e nada estava perdido.
Carregava comigo alguns poetas mortos. A palavra estava viva.
Esse tempo ficou adormecido como um pôr-de-sol no fundo do rio.
O tempo era noite calada.
A ditadura militar maltratava o pensamento, a livre circulação da emoção e das ideias. Manchava com tarjas pretas a verdade nas bocas e nos jornais.
Mas havia gente que não desistia. Os pássaros resistiam na praça.
Escondida como um segredo, havia uma rua quieta com perfume de açucena.
Eu levava na alma a felicidade de estar vivo. Perdoai.
Existia também um certo olhar, um cabelo em cacho nos ombros. Esse olhar e esse cabelo inventavam um jeito de ser feliz. Esse olhar e esse cabelo usavam saia azul adolescente. Habitavam um lugar claro na escuridão.
O Guaíba fazia o trabalho de levar nossas lágrimas para o mar em negros cargueiros.
Havia eu estar vivo e ter menos de 20 anos.
Havia aquela estrela brilhando na minha vida, apesar das bombas de gás lacrimogêneo, das prisões, dos desaparecimentos.
Coração aberto, peixe vivo.
O azul e branco do céu desenhado nas águas.
Um peixe voava entre as nuvens.
Sobrevivi àquilo em secreto, como quem descobriu um tesouro na ilha de pedra enquanto a cidade dormia.
Existia o rio, seu caminho largo para o sul em direção ao oceano.
A luz amarela do sol escorria entre as folhas e galhos da Praça Dom Feliciano. Lilases nas flores dos jacarandás.
Havia uma promessa de primavera. Eu tinha menos de 20 anos.
De passo em passo o tempo se cumpria. De mão em mão a manhã se erguia.
Não era ainda a primavera o que se via, mas um rascunho de flor no gradil da janela.
O coração colado à esperança.
Tinha o rio no fundo daqueles olhos, o horizonte do mar, o líquido azul infinito.
O sentimento navegava ao largo da cidade e seus medos, seus mortos.
O tempo era noite calada.
Tinha menos de 20 anos, a vida saltava feito peixe vivo.
A estrela brilhava em meu caminho.
Perdoai.
Jorge Adelar Finatto
Enviado por Ricardo Mainieri