AS PALAVRAS
(Fragmento)

(...) Era preciso, sem dúvida, uma ocasião. Por exemplo, o cair do dia: a sombra inundava a sala de jantar, eu empurrava minha pequena carteira para junto da janela, a angústia renascia, a docilidade de meus heróis, indefectivelmente sublimes, menosprezados e reabilitados, revelava a sua inconsistência, então a coisa vinha: um ser vertiginoso me fascinava, invisível; para vê-lo, cumpria descrevê-lo. Eu concluía vivamente a aventura em curso, conduzia minhas personagens a outra região do globo, em geral submarina ou subterrânea, apressava-me a expô-las a novos perigos: escafandristas ou geólogos improvisados, descobriam a trilha do Ser, seguiam-na e, de súbito, o encontraram. O que acudia então à minha pena – polvo de olhos de fogo, crustáceo de vinte toneladas, aranha-gigante e que falava – era eu mesmo, monstro infantil, era meu tédio de viver, meu medo de morrer, minha insipidez e minha perversidade. Eu não me reconhecia: apenas gerada, a imunda criatura se levantava contra mim, contra meus corajosos espeleólogos; eu temia pela vida deles, meu coração se acelerava, eu esquecia a minha mão; traçando as palavras, eu acreditava lê-las. Com muita frequencia as coisas ficavam nisso: eu não entregava os homens à Besta, mas tampouco os livrara do apuro; bastava, em suma, que eu os tivesse posto em contato; eu me erguia, ia à cozinha, à biblioteca; no dia seguinte, deixava uma ou duas páginas brancas e atirava minhas personagens em nova empreitada. Estranhos “romances”, sempre inacabados, sempre recomeçados ou continuados, como se queria, com outros títulos, bricabraque de contos negros e aventuras brancas, de acontecimentos fantásticos e verbetes de dicionários; eu os perdi e penso às vezes que é pena: tivesse eu me lembrado de guardá-los debaixo de chave, entregar-me-iam toda a minha infância.
Eu começava a descobrir-me. Eu não era quase nada, quando muito uma atividade sem conteúdo, mas não era preciso mais. Eu escapava à comédia: não trabalhava ainda, porém não brincava mais, o mentiroso encontrava sua verdade na elaboração de suas mentiras. Eu nasci da escrita: antes dela, havia tão-somente um jogo de espelhos; desde o meu primeiro romance, soube que uma criança se introduzira no palácio dos espelhos. Escrevendo, eu existia, escapava aos adultos: mas eu só existia para escrever, e seu eu dizia eu, isso significava: eu que escrevo. Não importa: conhecia a alegria; a criança pública marcou consigo mesma encontros privados.
Era bonito demais para durar: eu continuaria sincero, se houvesse permanecido na clandestinidade; arrancaram-me dela.”

Jean-Paul Sartre

Do livro: As Palavras (fls 91-92), Nova Fronteira, 2005, RJ
Enviado por Márcia Sanchez Luz

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